A tragédia palestina não começou no dia 7 de outubro de 2023. A data que marca o levante dos movimentos de resistência na Faixa de Gaza contra a ocupação colonial de Israel foi apenas mais um episódio sangrento na história de um conflito marcado por inúmeras violações aos direitos humanos.
A vida de Mai Al Bayoumi, que começou em 1984, em um acampamento de refugiados em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, é uma das provas de como a luta dos palestinos vem de longe e acontece dentro e fora dos territórios que deveriam configurar o Estado da Palestina, mas que são controlados militarmente por Israel.
“Para nós, o 7 de outubro é uma revolução, um dia importante na história, porque deu a conhecer o avanço da luta do povo palestino e do direito de fazê-la de todas as formas com um único objetivo: libertar a nossa terra”.
Atualmente, Mai vive em Madri, capital da Espanha. Ela é militante da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), através da qual se mantém ligada à luta do seu povo pelo direito de existir.
Prestes a completar 40 anos, a imigrante palestina conversou com Opera Mundi e falou sobre como foi nascer e crescer em um campo de refugiados que abrigava mais de 10 mil pessoas, onde se podia contar apenas com uma escola e um hospital. “Nascer refugiada é nascer diferente”, afirma.
“Em todas as casas palestinas há um mártir, um prisioneiro, um ferido. Em todas as famílias há vítimas do sionismo”, completa.
Leia a entrevista de Opera Mundi com a militante palestina Mai Al Bayoumi:
Opera Mundi: quando você deixou Rafah para viver em Madrid e como aconteceu essa oportunidade?
Mai Al Bayoumi: saí de Gaza rumo à Madrid em 2011 para participar de uma jornada de luta. Com o bloqueio imposto à Faixa de Gaza, foi difícil regressar. Ou seja, não havia como sair e depois voltar livremente.
Sua família ainda vive em Gaza? Se sim, em que região?
Até pouco tempo eles ainda viviam em Rafah, mas depois de um ataque aéreo próximo de casa, eles tentaram se mover para outro lugar. Já posso dizer que não há mais ninguém “dos meus” vivendo em suas próprias casas. Já perdi amigos, colegas e familiares. Em todas as casas palestinas há um mártir, um prisioneiro, um ferido. Em todas as famílias há vítimas do sionismo.
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Como são suas memórias da vida em Gaza?
A memória que tenho da ocupação é da minha vida cotidiana, de como era viver o dia a dia. Para realizar coisas simples, como sair de casa para ir à escola, ao hospital, ao mercado, ou em qualquer outro lugar, é preciso passar por um controle militar. Ver soldados israelenses armados, controlando os movimentos dos palestinos 24 horas por dia, é um trauma. A memória da vida diária de todos nós é a de soldados israelenses batendo nos mais velhos, torturando menores, destruindo tudo que veem pela frente.
Com que idade percebeu que era um alvo do sionismo de Israel?
Nascer como refugiada é nascer diferente. Eu cresci em um campo de refugiados com três quilômetros de extensão para mais de 10 mil pessoas. Com sua característica de ajuda humanitária, havia apenas uma escola e um hospital. Enquanto vivi naquela região, sabia que não se tratava de um lugar “normal”. Meus pais sempre falaram sobre a nossa terra e cultura, nunca nos esquecemos que somos refugiados e que um dia teremos que voltar.
Antes de 7 de outubro, como era a vida na Palestina?
A Palestina sofre uma ocupação de aproximadamente 120 anos. Há 76 anos, a ideologia sionista é praticada através do despejo de aldeias inteiras, massacres diários e encarceramento de palestinos, incluindo crianças. Dentro das prisões israelenses, essas pessoas são detidas sob o argumento de serem terroristas e levadas a um lugar onde a tortura é legalizada. A atual situação de conflito na região não é algo novo, é apenas mais uma etapa do projeto sionista, uma outra maneira de mostrar a sua ideologia e o seu objetivo de exterminar o povo palestino, apagar sua cultura e sua história. A Faixa de Gaza é a maior prisão do mundo. Desde 2005, a região sofre um bloqueio por terra, mar e ar. Apesar dos cortes de energia e água, da falta de medicamentos e alimentos, a população local tem sido capaz de realizar sua vida e construir um lar para viver. A vida nunca foi fácil, mas, pelo menos, a população tinha sonhos para cumprir.
E o que representa o 7 de outubro agora?
Para nós, 7 de outubro é uma revolução, um dia importante na história, porque deu a conhecer o avanço da luta do povo palestino e do direito de fazê-la de todas as formas com um único objetivo: libertar a sua terra. Sabemos que essa luta será difícil, com um caminho cheio de sangue e perdas humanas, mas estamos dispostos a pagar a pena. Sentimos que estamos cada vez mais perto da vitória. Viver com dignidade é o que o povo palestino merece, pois não há paz sem justiça.
Como cuidar da sua saúde mental diante de tantas catástrofes?
Me resguardo no ativismo, nas atividades políticas e sociais. É isso que me ajuda a cuidar de mim mesma e seguir em frente. Os palestinos que vivem na diáspora têm o dever de falar sobre a Palestina, explicar a nossa causa. Somos a geração da testemunha, a voz do povo, a voz de quem está escrevendo a história. Estar ciente disso me dá força.
Quando você passou a militar pela Frente Popular para a Libertação da Palestina?
Há muitos anos. A Faixa de Gaza foi a minha escola e o partido faz um trabalho importante, pois nos ensina o que a escola não é capaz de ensinar. Cresci em uma instituição da Agência de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, por sua sigla em inglês), que faz parte da Organização das Nações Unidas (ONU). Lá eles não explicavam nada sobre a história da Palestina. A FPLP, através das suas atividades, nos conta como as coisas aconteceram e nos explicam sobre o direito à resistência.
A Espanha reconheceu o Estado da Palestina. Você acredita que esta posição foi uma ação oportunista ou sente que o governo realmente apoia o fim do genocídio em Gaza?
Para mim, foi um claro gesto de oportunismo. Estamos vendo há 11 meses o genocídio mais bestial da história, que está sendo televisionado ao vivo. São mais de 40 mil mortes, mais de 90 mil feridos, 90% dos edifícios, escolas, hospitais e mesquitas bombardeados diariamente com armas cedidas pela Espanha e outros países cúmplices desse massacre. Reconhecer o Estado palestino não é nada mais do que dar ao Estado responsável pelo genocídio mais direitos para existir e continuar fazendo o que faz. O que o governo espanhol tem que fazer é cortar todas as relações culturais, econômicas e políticas com o Estado de Israel. Nós, como palestinas, não estamos de acordo com a solução de dois Estados. Estamos lutando por uma palestina laica, antifascista, feminista, anticolonial, ou seja, livre do rio até o mar.
Por que não se conseguiu chegar a um cessar-fogo até hoje? Como você avalia o papel da ONU diante do genocídio promovido por Israel?
A ONU, quando fala de direitos humanos ou de justiça, está justificando tudo o que o seu aliado faz no Oriente Médio. Não esqueçamos que o Estado de Israel é uma base militar criada na região pelos Estados Unidos, Inglaterra e União Europeia, com interesses políticos e econômicos. É uma base militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A ocupação começa na Palestina, mas o objetivo sionista é tomar toda aquela área. Aos poucos, estão ocupando a maior parte dos territórios que eles chamam de “Grande Israel”. Ou seja, estamos diante de um genocídio em Gaza que visa o extermínio da Palestina e a guerra em todo o Oriente Médio. Após o terrorismo brutal do sionismo na Palestina, acredito que um cessar-fogo não será suficiente. A retirada de todos os colonos do território palestino é o que eles têm que fazer, pois só assim será possível acabar com a ocupação sionista e garantir ao povo palestino o direito de retornar às suas terras, além de julgar [Benjamin] Netanyahu pelos seus crimes de guerra.
Você acredita que uma possível vitória de Donald Trump pode alterar as relações com o Estado de Israel no fornecimento de armas?
Seja com Trump ou com qualquer outro, os Estados Unidos sempre serão parte do problema na Palestina, nunca da solução. Para eles, a criação do Estado de Israel é algo necessário.
Você acredita que o Brasil pode ter um papel importante em um futuro acordo de paz?
O futuro do mundo está ligado ao futuro da Palestina. Todos os países têm um papel importante na solução da nossa causa. O Brasil mantém relações no âmbito político e militar com o terrorismo sionista. É uma causa que está presente na opinião pública, é uma questão política internacional e um ponto importante na agenda de todos os partidos políticos. Durante este ano, tivemos muitos protestos em defesa das vidas dos palestinos. Manifestações, acampamentos universitários e apelos em favor do boicote econômico, cultural e político ao Estado terrorista de Israel. Os povos não querem ser cúmplices deste genocídio. No Brasil, como em outros países, a opinião pública é um dever. Por isso há muitas censuras nos canais oficiais e muitas mentiras para confundir as pessoas.
Tem vontade de conhecer o Brasil algum dia?
Sim, eu gostaria de poder ir ao Brasil, um país muito reconhecido pelas múltiplas culturas que dão às terras brasileiras toda a sua riqueza. Também tenho vontade de ver de perto a história da luta popular pela soberania e contra o colonialismo português.
Que nomes da resistência palestina você toma como referência em sua trajetória de luta?
Para mim, as mães palestinas são o grande exemplo de luta. As mulheres palestinas sempre foram o pilar da força de todas as frentes da resistência. Eu gosto muito do modo de luta de Laila Khaled, gosto de como canta Kamilya Jubran. Samiha Khalil também foi uma mulher muito corajosa, e os discursos de Ahmad Sa’adat me dão energia para continuar.