Na última quinta-feira (28/11), o Centro de Estudos Palestinos (CEPal) da Universidade de São Paulo (USP), promoveu o Seminário “Racismo, Colonialismo e Genocídio na Palestina”, do qual a jornalista Shahd Safi, nascida e crescida na Faixa de Gaza, participou.
Safi conversou com Opera Mundi sobre como é nascer sob ocupação, crescer embaixo do som de aviões israelenses sobrevoando Gaza e o constante conhecimento de que, por ser palestina, poderia morrer a qualquer momento sob bombardeio, mesmo antes de 7 de outubro de 2023 – quando o grupo de resistência Hamas atacou Israel e este usou do fato para promover um genocídio no enclave.
Ela contou que deixou o enclave pela primeira vez em março passado em direção ao Cairo, devido ao deslocamento forçado
Relatando que sua identidade palestina e a sequência de violações de direitos humanos em Gaza, transformaram-na em uma jornalista, Safi – que agora estuda Direitos Humanos nos Estados Unidos – detalhou sua chegada à profissão, como reportava histórias de palestinos à grandes veículos internacionais, como o LA Times, AL Jazeera e Middle East Eye, e instou a imprensa independente brasileira à cobertura da “verdadeira narrativa” sobre o que acontece na Palestina.
“A mídia ocidental não destacou a opressão, mas fez o contrário, literalmente contribuiu para o genocídio israelense, tentando fazer com que parecesse normal, desumanizando os palestinos, dizendo que os palestinos morrem, enquanto israelenses são mortos. Nós não morremos, nós somos mortos. Vamos deixar isso bem claro”, disse.
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Opera Mundi: como você decidiu se tornar uma jornalista? Algo em Gaza ou em sua história a influenciou para ser uma repórter?
Shahd Safi: tudo o que me cercava eram violações dos direitos humanos. Ao ver tudo isso, senti que, como uma palestina que cresceu em Gaza, eu precisava ser ouvida. Em 2019, conheci algumas pessoas que estavam se voluntariando para trabalhar como escritores. Elas escreviam suas próprias histórias e, ao mesmo tempo, eram orientadas. Então, fiquei interessada e comecei a perguntar sobre esse projeto, que se chama We are not numbers (Nós não somos números, em tradução livre). Foi assim que comecei a escrever em inglês.
Anteriormente, eu escrevia em árabe, mas depois percebi que, como tenho um bom inglês e estava vendo todas essas violações, talvez fosse útil falar sobre o que estava acontecendo no site do We are not numbers. Á época, era o único que me daria a oportunidade de compartilhar minha história com o Ocidente. Então, eu fui em frente, me candidatei, fui aprovada, e a orientação começou. Fui orientada por muitos escritores e jornalistas internacionais sobre como escrever minha história porque, infelizmente, Gaza está separada do mundo inteiro.
Portanto, a orientação foi sobre como usar as palavras políticas adequadas ao falar sobre minha história como palestina. E começamos a ver como escrever uma matéria jornalística, um ensaio, artigo, uma narrativa pessoal. Foi um longo período de seis meses aprendendo a escrever.
Foi assim que comecei no campo e, como palestina, tenho esse senso de responsabilidade de falar, manifestar-me e compartilhar o que estou vendo, porque é claramente errado e está sendo escondido propositalmente, porque quando alguém comete um crime, fazem tudo o que podem para escondê-lo.
Então, eu vi isso e pensei: ‘quero compartilhar minha história e expor o crime’. Foi assim que me envolvi com o jornalismo. Durante o genocídio, minha responsabilidade aumentou porque as violações se tornaram mais severas.
Quais são as principais diferenças na cobertura jornalística antes e depois desse atual massacre de Israel na Faixa de Gaza?
É apenas a escala. Antes de 7 de outubro [de 2023, havia crimes e violações israelenses. Eles [imprensa ocidental] compartilhavam uma narrativa que nem sequer é verdadeira, uma narrativa manipuladora que desumaniza os palestinos e que normaliza os crimes [de Israel].
Durante o genocídio, a diferença foi que a intensidade das violações se tornou extrema. Digamos que inacreditáveis. Eles fizeram coisas que o mundo nunca havia experimentado antes. O que aconteceu durante o genocídio foi a exposição da grande mídia, ela nos mostra que é controlada por Estados poderosos, que está usando a narrativa errada e que está ciente e consciente de que está fazendo isso de propósito por causa do dinheiro, dos benefícios financeiros e dos privilégios que recebe.
A mídia convencional ainda tentou fazer o melhor que pôde para convencer as pessoas de que o que está acontecendo em Gaza não é um genocídio, mesmo que qualquer pessoa idiota possa dizer que se trata de um genocídio. A mídia ainda tenta manipular as pessoas para que acreditem que não é. Eles usam termos errados, como conflito.
Não é um conflito, não é uma guerra. Guerra e conflito ocorrem entre lados iguais. Quando se trata de Israel e da resistência armada palestina, nunca houve simetria de poder.
Israel sempre teve o Exército mais poderoso, forte e mais imoral do Oriente Médio. Eles afirmam que são o único estado democrático do Oriente Médio, mas na verdade é o único Estado em todo o mundo que detém legalmente crianças. Eles têm uma legislação que permite a detenção de crianças, de modo que as crianças palestinas podem ser detidas.
Israel é o único Estado que mata diversas crianças palestinas literalmente a cada poucos minutos. Quão democrático você é quando mata alguém que nem sequer é capaz de pensar de forma adulta.
Então, a mídia não destacou a opressão, mas fez o contrário, literalmente contribuiu para o genocídio israelense, tentando fazer com que parecesse normal, desumanizando os palestinos, dizendo que os palestinos morrem, enquanto israelenses são mortos. Nós não morremos, nós somos mortos. Vamos deixar isso bem claro.
Nos conte sobre seu trabalho como jornalista em Gaza em meio ao genocídio. Houve algum tipo de ameaça ou censura envolvendo especificamente jornalistas como você?
É claro. O genocídio facilmente transforma as pessoas em jornalistas, porque qualquer um pode filmar qualquer vídeo. Então essas pessoas conseguem um público e se tornam jornalistas. Minha experiência é que fui treinada e investi no conhecimento para entrar em contato com veículos internacionais.
Então, o que eu estava fazendo não era gravar vídeos. Eu estava escrevendo, escrever era meu jornalismo. Nós, jornalistas palestinos, trabalhamos juntos para compartilhar a grande imagem. Eu escrevia a partir de entrevistas e outras pessoas produziam conteúdo visual.
Eu também estava muito limitada em Gaza porque estava com muito medo, pois os jornalistas são visados.
Quando o genocídio começou, juro por Deus, todos os dias, literalmente todos os dias, eu recebia a notícia de um amigo meu que estava sendo morto por causa de sua experiência jornalística, por causa do compartilhamento de suas histórias, mesmo que não jornalísticas, às vezes pessoais. Conheço pessoas que me são queridas e que foram mortas.
Você não precisa ser um jornalista para ser morto. Se você é palestino, já está ameaçado de morte. O fato de você ser um jornalista é mais uma camada de ameaça. Então eu não chegava perto [dos ataques]. Eu me deslocava entre casas diferentes [de familiares]. Na casa dos meus avós, recebemos muitas pessoas deslocadas, eles vinham e eu perguntava o que havia acontecido, entrevistava-os e escrevia suas próprias experiências ou as minhas, e publicava no LA Times, no Middle East Eye, na Al Jazeera e muitos outros veículos.
Qual foi o cenário mais impactante que você reportou enquanto cobria o genocídio em Gaza?
Eu me lembro dos muitos deslocamentos. Lembro-me da carne e do sangue do meu povo nos bombardeios. Houve muitas vezes em que nosso prédio, ou o local para onde fomos deslocados, tremia. E, para nós, tremer significa que o local pode ser bombardeado. Assim a adrenalina fica tão alta que você não consegue pensar ou funcionar com clareza. Você fica realmente incapaz de decidir.
Quando há um choque próximo e sentimos a ameaça e começamos a evacuar, eu não digo a ninguém o que fazer. Essa é a regra que estabeleço para mim mesma porque nesses momentos estou tão confusa e assustada que não consigo decidir ou pensar com clareza. E se alguém morrer e fui eu que lhe disse para ir até o local atingido? Não consigo lidar com isso.
Uma imagem da qual me lembro foi quando senti um solavanco e então olhei pela janela. Estavam tirando a carne de debaixo dos escombros, e eu estava olhando para lá e era o meu povo. Lembro que vi um dos membros da Defesa Civil tentando separar a carne das pedras porque em nossa cultura é preciso enterrar as pessoas, como forma de dar-lhes dignidade. Então estavam pegando os escombros e tentando reconhecer quem era essa pessoa, se era uma criança, uma pessoa adulta, uma mulher, qualquer informação para que eles pudessem perguntar às pessoas sobre a identidade dessa vítima
Então, enquanto olhava pela janela, os membros da minha família também estavam olhando comigo e me lembro de como todos nós ficamos. Choramos intensamente porque, ao ver aquilo, eu sei o que todos estavam pensando: essa carne poderia ser minha ou de qualquer pessoa que estivesse ali. Este é o meu povo. Esse sangue e essa carne estão sendo violados. Essa pessoa merece uma vida melhor. Essa pessoa que está em sua casa, vivendo sua vida normalmente, não merece esse destino.
Eu me lembro daquele dia porque todos nós nos reunimos no primeiro andar porque estávamos com medo. E meu primo, que tem quase 12 anos de idade e chama-se Ahmed, ficou chocado, e estávamos tentando fazê-lo voltar à normalidade. Então, meu tio começou a contar piadas para ele e a fazê-lo rir, e ele não conseguiu sair [do estado de choque] até dizer o que tinha visto e o que ele tinha visto era extremo. Eu não vi, mas ele disse que estava muito perto da janela, então quando o bombardeio aconteceu, ela se estilhaçou.
Graças a Deus nenhum vidro entrou em seu corpo, embora ele estivesse literalmente muito perto, embaixo da janela. Mas ele disse que viu uma menina cair da janela, uma criancinha que ele conhecia pessoalmente, porque ela morava perto da casa em que estávamos. Então ele conhecia essa menina, eram vizinhos. Ela era uma criança como ele e sua cabeça estava rachada, aberta e sangrando. Mas ela ainda estava viva, e ele a viu dando seu último suspiro e ela caiu. A ambulância a levou e ouvimos a notícia de que ela não aguentou e morreu. Ela foi morta por soldados israelenses.
Como nós podemos ajudar a construir uma narrativa justa e humana sobre o que acontece na Faixa de Gaza?
Antes de mais nada, tente contribuir mais para a narrativa verdadeira. Novamente, não é um conflito. Tente se informar sobre como abordar a narrativa palestina, há recursos online. Tente compartilhar cada vez mais a verdadeira narrativa, tanto quanto possível. Tente ser mais forte do que a manipulação, fale mais alto.
Tente fazer iniciativas para se conectar com as pessoas e se familiarizar com a situação na Palestina, não precisa ser apenas na grande mídia, o que é muito necessário, é claro, mas também em um nível pessoal, compartilhando uma história sobre o que está acontecendo na Palestina. Pode ser no carro, em um passeio de ônibus, compartilhando as semelhanças entre a sua cultura e a nossa, a comida, a música, a literatura.
Há muitas coisas que você pode fazer. Por exemplo, um evento cultural no Brasil que informe sobre como contribuir com as pessoas que são oprimidas, dedicando um tempo à história palestina.
Mas também cortar produtos. Uma das coisas que vivenciei aqui no Brasil é que todo mundo bebe Coca-Cola, e deveria ser boicotado. Portanto, aumentar a conscientização de que esses produtos, os produtos israelenses, devem ser cortados, porque cada vez que você bebe ou come um produto israelense, o dinheiro vai para nos matar.
E nunca perca a esperança. Os palestinos não estão desistindo, portanto, não desistam de nós.
Acesse os trabalhos jornalísticos de Shahd Shafi neste link enviado por ela a Opera Mundi.