As três indicações ao Oscar recebidas pelo filme brasileiro Ainda Estou Aqui despertaram não só a expectativa sobre a possível conquista da estatueta, o que seria um fato inédito para o cinema nacional, como também os debates sobre como o país trata a sua produção cinematográfica e o que deveria mudar para que situações como essa sejam mais frequentes.
Em entrevista para Opera Mundi, a crítica de cinema e diretora de arte Natália Bridi enfatizou que “essa indicação à premiação de cinema mais reconhecida do mundo é, mas uma vez, um lembrete de que o que criamos aqui é único e merece o nosso investimento, e me refiro tanto ao investimento daqueles que têm o poder de tirar os projetos do papel quanto o do público que compra o ingresso, que é o que viabiliza que mais histórias sejam contadas no futuro”.
“Nossa história cinematográfica é longa, mas ainda não estabelecemos alicerces sólidos para a criação de uma ‘indústria’ que permita que mais vozes brasileiras sejam ouvidas, tanto por nós mesmos quanto lá fora”, acrescentou Bridi, uma das sócias e apresentadoras do canal Entre Migas, especializado em cinema, televisão e comportamento.
Vale lembrar que a obra do diretor Walter Salles concorrerá ao Oscar, prêmio entregue pela Academia de Cinema de Hollywood, nas categorias de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz, pela performance de Fernanda Torres como Eunice Paiva, personagem que protagoniza o longa. Os vencedores serão conhecidos em cerimônia marcada para o próximo dia 2 de março, em Los Angeles, nos Estados Unidos.
Na categoria Melhor Filme, a película brasileira disputará a estatueta com outros nove concorrentes: Anora, O Brutalista, Um Completo Desconhecido, Conclave, Duna: Parte 2, Emilia Pérez, Nickel Boys, A Substância e Wicked.
Na disputa para Melhor Filme Internacional, a obra participa ao lado de Emilia Pérez, Flow, A Garota da Agulha e A Semente do Fruto Sagrado.
A atriz Fernanda Torres concorre ao prêmio de Melhor Atriz contra Cynthia Erivo (Wicked), Demi Moore (A Substância), Karla Sofía Gascón (Emilia Pérez) e Mikey Madison (Anora).
A vitória da atriz brasileira no Globo de Ouro de 2025, na categoria Melhor Atriz de Drama, tem gerado expectativas sobre sua presença no Oscar. Natália Bridi lembra que “depois da indicação de Fernanda Torres, diversos veículos norte-americanos destacaram que ela é a segunda brasileira indicada ao Oscar, muitos anos depois de sua mãe”.
“Ao mesmo tempo, as narrativas de Demi Moore, finalmente reconhecida por seus méritos artísticos, depois de ser tratada como uma atriz apenas comercial, e de Karla Sofía Gascón, primeira atriz trans indicada, em um momento extremamente difícil para a comunidade LGBTQIA+ nos Estados Unidos, também são muito fortes”, acrescenta.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: O quão importante para o cinema brasileiro é a indicação ao Oscar de Ainda Estou Aqui e de Fernanda Torres?
Natália Bridi: Todo reconhecimento que o cinema brasileiro recebe é de extrema importância. Infelizmente, ainda é uma luta árdua fazer cinema no Brasil, apesar de tantos filmes e atuações dignas de nota. Nossa história cinematográfica é longa, mas ainda não estabelecemos alicerces sólidos para a criação de uma “indústria” que permita que mais vozes brasileiras sejam ouvidas, tanto por nós mesmos quanto lá fora.
Então, essa indicação à premiação de cinema mais reconhecida do mundo é, mas uma vez, um lembrete de que o que criamos aqui é único e merece o nosso investimento, e me refiro tanto ao investimento daqueles que têm o poder de tirar os projetos do papel quanto o do público que compra o ingresso, que é o que viabiliza que mais histórias sejam contadas no futuro.
Esta não é a primeira vez que o Brasil recebe esse tipo de reconhecimento, mas o alcance que estamos vendo com Ainda Estou Aqui e com a figura de Fernanda Torres criou um clima geral de orgulho nacional, muito graças ao “barulho” das redes sociais, o que nos deixa otimistas para os próximos passos.
Sobre o filme em si, qual é a sua análise sobre Ainda Estou Aqui, artisticamente falando?
É um filme sobre resiliência e esse recorte, focado na trajetória de Eunice Paiva, é o que faz com que o filme ressoe com tantas pessoas. Walter Salles é um cineasta cuidadoso, que sabe trabalhar os espaços em que conta sua história e a amplitude emocional dos seus protagonistas. Sempre sutil, controlado, não buscando explosões, mas o que se esconde naquilo que não é dito. E aí entra o trabalho primoroso de Fernanda Torres. Eunice é uma heroína imperfeita, que nunca fala o que sente, mesmo nos momentos de maior dor. Guarda tudo para si, para proteger os seus. Segue em frente, firme, e reconstrói mesmo quando não parece haver mais nada. A atuação de Fernanda e a direção de Walter Salles nos dão a dimensão desse peso, sem que em nenhum momento ela precise traduzir em palavras sentimentos e atitudes.
Esse recorte da resiliência também permite que o filme fale sobre a ditadura militar de uma forma abrangente, tornando-a um pano de fundo e não o centro da trama. Esse momento da história brasileira é complexo demais para caber em duas horas e dezoito minutos, e o roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega aproveita o testemunho do livro de Marcelo Rubens Paiva sobre sua mãe para estabelecer uma história focada nos seus personagens.
Ou seja, artisticamente falando, Ainda Estou Aqui é um filme que sabe muito bem como trabalhar, visual e emocionalmente, a história que se propôs a contar, e é por isso que tem tido respostas tão positivas do público brasileiro e internacional.
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Quais são as chances de vitória para Ainda Estou Aqui no Oscar? Tanto se fala que o Oscar é um prêmio da indústria do cinema, onde o que ganha é a melhor campanha que os produtores e os estúdios fazem para conquistar votos. Essa dinâmica joga a favor ou contra o filme brasileiro?
As indicações de Ainda Estou Aqui são mérito da qualidade artística do filme, claro, mas também de muito investimento. Ao contrário de outros cineastas brasileiros, Walter Salles tem meios para fazer a campanha necessária, o que resultou nessas três indicações e pode valer uma estatueta do Oscar. Além disso, Fernanda Torres é uma máquina de simpatia, promovendo o melhor do jeitinho brasileiro por onde passa. Ou seja, temos muito a favor, mas há também muita concorrência.
Quais as chances de Fernanda Torres vencer na categoria de Melhor Atriz? A história de sua mãe, por aquela derrota contra Gwyneth Paltrow no Oscar de 1999, pode ser um fator favorável a ela na disputa?
Sim. Durante a campanha pelo prêmio, a narrativa é muito importante e a de Fernanda Torres gera conversas e impressiona. Depois da sua indicação, diversos veículos norte-americanos destacaram que ela era a segunda brasileira indicada ao Oscar muitos anos depois de sua mãe.
Ao mesmo tempo, as narrativas de Demi Moore, finalmente reconhecida por seus méritos artísticos, depois de ser tratada como uma atriz apenas comercial, e em um filme que levanta a questão do etarismo, e de Karla Sofía Gascón, primeira atriz trans indicada em um momento extremamente difícil para a comunidade LGBTQIA+ nos Estados Unidos, também são muito fortes. Isso pode até dividir os votantes, o que pode favorecer Cynthia Erivo e Mikey Madison.

Fernanda Torres é a protagonista do filme ‘Ainda Estou Aqui’, indicado ao Oscar em três categorias
O sucesso de Ainda Estou Aqui é nas salas brasileiras tem sido atribuído aos prêmios, mas a verdade é que parece haver, no momento, um pequeno boom de cinema brasileiro. Atualmente, em algumas salas, é possível ver entre três a quatro filmes brasileiros em cartaz simultaneamente. É o fim do mito de que “brasileiro não gosta de filme nacional” ou só um momento extraordinário, mas não necessariamente fácil de repetir?
Espero que seja o fim do mito. Acredito que o brasileiro esteja gostando de se ver na tela e o nosso cinema também tem traduzido melhor o que público que ver. Já tivemos muitos momentos extraordinários, então é hora de transformar nosso cinema em tradição.
Qual é a importância de termos um filme brasileiro de tanto sucesso que conta a história de uma mulher como a Eunice Paiva? Você acha que as perspectivas femininas, tanto no que diz respeito a personagens femininas como protagonistas como também na questão da divulgação de trabalhos de diretoras mulheres, têm sido mais valorizadas pelo cinema nos últimos anos?
Certamente, as vozes femininas conquistaram um espaço, finalmente. Mas é um espaço ainda frágil. No Oscar desse ano, além das indicações de Ainda Estou Aqui e de Fernanda Torres, o que mais me fez vibrar foram as indicações de Coralie Fargeat nas categorias de Melhor Roteiro Original e Melhor Direção por A Substância, um filme que tem uma perspectiva claramente feminina, em um gênero cinematográfico pouco reconhecido pela Academia (o body horror, determinação que não dá conta de todas as camadas do filme, mas já explica o quão distante ele está de outros títulos presentes na premiação).
Como você analisa a polêmica a respeito de Emilia Pérez? A campanha do filme tem apostado na questão da valorização das pessoas trans, confrontando o elemento transfóbico do discurso trumpista, mas há um outro elemento que o filme alimenta, que é o estereótipo do mexicano bandido, um estigma que ajuda a sustentar a retórica de ódio aos imigrantes. Enfim, Emilia Pérez é um filme que desafia ou que favorece o trumpismo? Ou estaria numa zona cinza?
O caso de Emilia Pérez é complexo demais para se analisar nesta resposta, mas é certamente um filme que recebeu mais atenção do que o esperado, o que acabou gerando uma série de críticas, seja pelo retrato problemático e repleto de erros do México, feito por uma equipe francesa e com apenas uma atriz mexicana no elenco principal, seja pela representatividade trans vista também como problemática e datada.
Ao mesmo tempo, sem entrar nos méritos e deméritos do filme como produto artístico, é o filme que colocou uma atriz trans como indicada ao Oscar pela primeira vez, na categoria principal, e tem gerado discussões em um momento em que a população trans norte-americana é perseguida pelo governo desde seu primeiro dia no poder. Ou seja, bom ou ruim, Emilia Pérez se tornou um tópico de discussão importante, ainda mais em uma época em que as redes sociais favorecem as polêmicas na busca por engajamento.
Não que eu esteja defendendo a realização de um filme que não leva em conta os diversos pontos sensíveis aos que ele se propôs a tratar, o que colocou em segundo plano seus méritos artísticos, ou a fácil aceitação, pela Academia e por outras premiações, de uma narrativa por ser construída em cima de clichês, mas é um momento em que as coisas estão tão difíceis que a melhor opção é focar no positivo: o reconhecimento de Karla Sofía Gascón e a oportunidade de começar conversas sobre representação cultural e representatividade LGBTQIA+.
Emilia Pérez é o principal adversário de Ainda Estou Aqui no Oscar? Que outros filmes chegam fortes nesta disputa?
Emilia Pérez certamente está na dianteira, afinal, recebeu 13 indicações. Mas não é incomum o filme mais indicado sair com poucas estatuetas. Acredito que este vai ser um Oscar divisivo, com Conclave e O Brutalista também aparecendo com muitas chances nas categorias principais, apesar da polêmica sobre o uso de inteligência artificial. Para quem gosta de participar de bolões, sempre indico ficar de olho nos prêmios dos sindicatos, que dão uma boa ideia nas categorias técnicas, mas eu sinto que esse Oscar está bem difícil de mensurar.