Recentemente, o mundo tem testemunhado uma escalada mais nítida de tensões entre a Coreia do Norte e o Sul. Um dos episódios que simbolizou o desgaste entre as duas nações vizinhas foi a destruição das vias norte-coreanas de Gyeonggi e Donghae que, ao interligar seus territórios, representavam os remanescentes das relações bilaterais entre Pyongyang e Seul.
As decisões mais drásticas tomadas pela Coreia do Norte nas últimas semanas foram justificadas por seu líder, Kim Jong Un, como sendo medidas preventivas contra as ameaças dos “imperialistas dos Estados Unidos” ao fortalecerem a aliança militar com a Coreia do Sul.
Nesse contexto, o retorno de Donald Trump à Casa Branca, que configura um novo cenário geopolítico, influencia diretamente nas condutas que tanto Pyongyang quanto Seul adotarão futuramente.
A Opera Mundi, o pesquisador Camilo Aguirre Torrini, doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Sussex, no Reino Unido, com mestrado em Estudos Coreanos pela Universidade Nacional de Seul, avaliou que o presidente eleito dos Estados Unidos, em seu segundo mandato, pode aprofundar o envolvimento de seu país com a Coreia do Norte. No entanto, não necessariamente tendo o intuito de estreitar as relações com o país, mas sim para “mostrar como é um líder forte”.
Segundo Aguirre, que trabalha como coordenador do Programa de Estudos Coreanos do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, independentemente do resultado eleitoral, a cooperação militar entre os EUA e a Coreia do Sul será contínua, já que “defesa” é uma área que Seul depende fortemente de Washington.
A Guerra da Ucrânia também ocupou um espaço relevante durante a campanha eleitoral dos principais candidatos presidenciais norte-americanos. Trump afirmou que acabaria com o conflito ucraniano “em 24 horas”, declaração que foi acenada pela Rússia na ocasião. Após reeleito, o presidente russo Vladimir Putin destacou que as decisões que o norte-americano tomará sobre a questão “merecem atenção”.
Nas últimas semanas, o governo norte-coreano foi acusado pela aliança ocidental, incluindo Seul, Washington e a OTAN, de ter enviado tropas militares ao território russo para lutarem contra Kiev. A alegação foi, num primeiro momento, rechaçada por Pyongyang, enquanto Moscou não confirmou, mas também não negou sua veracidade.
De acordo com o pesquisador, o assunto deve ser analisado com cautela, uma vez que ele ainda está em desenvolvimento. No entanto, aponta que, qualquer que seja o foco do seu envolvimento com Moscou, a presença norte-coreana na Rússia permitirá que tanto Pyongyang como os seus adversários avaliem o desempenho das forças lideradas por Kim em caso de “combate real”.
Para Aguirre, a aproximação entre Rússia e Coreia do Norte “reflete a necessidade destes Estados ‘párias’ procurarem aliados” sob um contexto diferente da Guerra Fria, tendo agora como foco uma certa “urgência” em formar laços estratégicos. Já quando se menciona China, apesar de sua proximidade geográfica com o território norte-coreano, observa que o país “não parece interessado em competir abertamente com Moscou pelo título de principal benfeitor de Pyongyang”, uma vez que tem focado em investir em iniciativas como a Nova Rota da Seda.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: A Coreia do Norte acusa os EUA de ajudarem militarmente a Coreia do Sul, inclusive no âmbito nuclear. Será que a constante interferência de Washington nos assuntos coreanos, tão criticada por Kim Jong Un, prova que Pyongyang representa uma ameaça para os EUA?
Camilo Aguirre Torrini: As acusações da Coreia do Norte de os EUA ajudarem militarmente a Coreia do Sul baseiam-se principalmente em exercícios militares conjuntos entre os dois países. Embora Washington e Seul insistam que estes exercícios são defensivos, no Norte são interpretados como exercícios de invasão.
No que diz respeito à percepção norte-americana sobre a Coreia do Norte, o seu programa nuclear e de mísseis balísticos constitui um risco significativo não apenas para os seus aliados na região, como a Coreia do Sul e o Japão, mas também para suas bases militares no Pacífico.
A eleição nos EUA poderá mudar o destino do apoio norte-americano à Coreia do Sul, uma vez que Donald Trump, durante o seu primeiro mandato, esteve mais próximo de Kim. O que podemos esperar da cooperação militar entre Washington e Seul?
Embora Donald Trump e Kim Jong Un tenham alcançado uma proximidade no final do seu mandato, isso não resultou em progressos concretos. Também vale lembrar que antes de sua abordagem, Trump o chamava de “Pequeno Homem Foguete”. É provável que o republicano se concentre nas relações EUA-Coreia do Norte para mostrar como é um líder forte, seja buscando cooperação ou confrontando Kim.
No que diz respeito à cooperação militar entre os EUA e a Coreia do Sul, tem havido continuidade independentemente de quem ocupa a Casa Branca. A Coreia do Sul mantém um grau relativo de autonomia em relação aos EUA, mas mesmo assim, há uma área em que Seul depende de Washington: a defesa. Atualmente, o país está sob a égide nuclear norte-americana, embora existam vozes mais radicais que defendem o desenvolvimento do seu próprio programa nuclear.
Como você entende a aproximação entre a Coreia do Norte e a Rússia? Poderá tornar-se uma aliança como a que existia nos tempos soviéticos, entre Moscou e Pyongyang, enquanto Washington e Seul?
Considero que a aproximação entre os dois países sujeitos a sanções e isolados pelo Ocidente reflete a necessidade destes Estados “párias” procurarem aliados. Diferente de uma simples reformulação da aliança da Guerra Fria, a cooperação atual destaca a urgência de formar laços estratégicos. Este contexto explica não só a relação entre a Rússia e a Coreia do Norte, mas também a política externa de outros países como o Irã e a Síria, bem como a de nações mais próximas da nossa realidade, como a Nicarágua e a Venezuela.
Após rumores sobre um possível envio de tropas militares para treinamento na Rússia, você acha que a Coreia do Norte está considerando uma nova frente de guerra contra a Ucrânia? Quais seriam as consequências disso?
Este assunto ainda está em desenvolvimento e surgem constantemente detalhes que podem alterar a nossa compreensão, por isso é aconselhável ter cautela. Até agora, sabemos que a Coreia do Norte está treinando tropas na Rússia, embora o seu objetivo permaneça incerto.
Alguns imaginam que as tropas poderiam estar lutando nas linhas de frente, enquanto outros as vêem como substitutos para libertar as forças russas na retaguarda. Qualquer que seja o foco do seu envolvimento, a presença norte-coreana na Rússia permitirá que tanto Pyongyang como os seus adversários avaliem o desempenho das forças norte-coreanas em combate real.
Que influência pode a China ter no conflito entre as Coreias? Será que uma possível guerra em um território tão próximo do seu poderia alertar Pequim?
Ao contrário da Guerra Fria, Pequim não parece interessada em competir abertamente com Moscou pelo título de principal benfeitor de Pyongyang. Atualmente a China está utilizando o seu poder brando através de iniciativas como a Nova Rota da Seda, o que faz com que não convenha uma relação estreita com a Coreia do Norte.
Quanto a uma possível escalada de tensões na península, a China observa com preocupação, pois poderá desencadear uma crise migratória na região fronteiriça. Esta situação não só afetaria a estabilidade local, mas também poderia impactar nos seus interesses econômicos e de segurança.
Poderia o medo de uma nova fase da Guerra da Coreia desencadear mudanças políticas na Coreia do Sul? O clima do país está sendo afetado por esta expectativa?
Embora o envio de balões de lixo pela Coreia do Norte e a alegada utilização de um drone sul-coreano possam parecer sinais de uma tensão sem precedentes, na realidade são apenas mais um elo numa longa série de crises nas relações intercoreanas, semelhante à que foi vivida em 2010.
Embora as relações intercoreanas sejam um fator relevante na análise da política sul-coreana, elas não definem tudo. Um exemplo disso foram as últimas eleições presidenciais: o ex-presidente Moon Jae In, apesar da sua gestão eficaz envolvendo as relações intercoreanas, não conseguiu resolver problemas mais imediatos, como a crise imobiliária. Isto abreviou as opções do partido no poder e permitiu a vitória da oposição, representada pelo atual presidente Yoon Suk Yeol.
Podemos dizer que estamos testemunhando tensões de uma nova Guerra da Coreia? Ou melhor: existe a possibilidade de um conflito bélico?
Em teoria, não deveríamos referir-nos a uma “nova” Guerra da Coreia, uma vez que o conflito que começou em 1950 ainda não terminou. Neste contexto, o armistício tornou-se uma paz imperfeita. Embora a probabilidade de um conflito armado seja baixa, não podemos descartá-lo completamente.
O cenário atual entre as Coreias, e uma possível aproximação entre Pyongyang e a Rússia, afetam de alguma forma a América Latina? Como podemos avaliar a relação entre as nações latino-americanas e a Coreia do Norte?
Falar sobre a América Latina como um bloco é complicado. Recentemente, temos observado o interesse de vários Estados latino-americanos em aderir ao BRICS, que busca estabelecer uma nova ordem internacional. Isto poderia facilitar uma maior aproximação com a Rússia, o que poderia funcionar como uma ponte para ligar a América Latina à Coreia do Norte.
No que diz respeito às relações entre a República Popular Democrática da Coreia (RPDC) e a América Latina, podem ser identificadas pelo menos três posições.
Primeiro, há países como o Brasil e o Chile que, embora mantenham relações diplomáticas, limitam-nas e priorizam o intercâmbio comercial. Em segundo lugar, existem nações que têm relações bilaterais mais fortes, como Cuba, Venezuela e, mais recentemente, Nicarágua. Por último, há países como o México e o Peru, que, no contexto do sexto teste nuclear norte-coreano em 2017, responderam positivamente aos pedidos dos EUA, chegando ao ponto de declarar os embaixadores norte-coreanos nos seus territórios “persona non grata”.
Além disso, é importante mencionar que, para além da diplomacia tradicional e das relações comerciais, a Coreia do Norte utiliza a diplomacia pública como canal alternativo. Exemplo disso é a presença de associações de amizade com o povo coreano e institutos de estudos Juche (ideologia oficial do Partido dos Trabalhadores norte-coreano, introduzida por Kim Il Sung, que se refere a um indivíduo como dono de si próprio) em vários países latino-americanos.