“Quando penso em meu legado, não desejo que as futuras gerações pensem que eu era apegado ao poder. Ao mesmo tempo, quero que saibam que não virei as costas para os desafios do país.”
Esta frase poderia ser dita por qualquer presidente em busca de um segundo, terceiro mandato ou mais. Foi pronunciada por Álvaro Uribe, mandatário da Colômbia e sabidamente uma das únicas lideranças conservadoras do continente na atualidade (faz coro com Felipe Calderón, do México, e Alan García, do Peru). Mas nem toda semelhança é pura coincidência. Isto mostra que a democracia na América Latina vive um momento particular, de ajustes de contas cujos resultados ainda são imprevisíveis.
É nessa linha que a decisão da Corte Suprema de Justiça da Nicarágua de anular o artigo da Constituição que proíbe a reeleição joga gasolina na já incendiada conjuntura política do país. Até as pedras vulcânicas de Masaya sabiam da intenção de Daniel Ortega de buscar um novo mandato presidencial assim que tomou posse pela segunda vez, em janeiro de 2007 (a primeira foi de 1984 a 1990).
Ortega lançou sua tese de reeleição durante as comemorações do 30º aniversário da Revolução Sandinista, no dia 19 de julho. Diante de uma multidão estimada em 100 mil pessoas, ele perguntou: “Se os deputados podem ser reeleitos, por que não o presidente e os prefeitos?”. Na seqüência, emendou: “El pueblo elije, el pueblo quita” (o povo elege, o povo tira).
Na ocasião, a oposição chiou e acusou o caráter autoritário da proposta. O presidente, com sua calma habitual, capaz de irritar até um monge budista, disse que não se tratava de uma proposta fechada e que caberia à Assembléia Nacional encaminhar qualquer alteração. Falou meia-verdade ou meia-mentira, dependendo do ponto de vista. E como na Nicarágua as coisas são “pão, pão, queijo, queijo”, Ortega esperou o momento certo para apresentar seu recurso, numa estratégia previamente combinada com os parlamentares e juízes sandinistas.
O discurso na praça foi a senha para uma intensa movimentação nos bastidores da Assembléia Nacional. Apesar de ser o partido majoritário – 46 parlamentares num total de 92 –, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) precisava costurar um acordo com a parcela conservadora liderada pelo ex-presidente Arnoldo Alemán (1995-2000), curiosamente o mesmo que promulgou o veto à reeleição. A aliança, exitosa em outras matérias, dessa vez fez água. Faltaram quatro votos.
Plano B
Ortega partiu então para o segundo movimento: juntamente com 109 prefeitos, todos eles sandinistas, ingressou com um recurso de amparo no Conselho Superior Eleitoral pedindo a nulidade do artigo 147 que proíbe a reeleição de quem já foi presidente por dois mandatos.
Certamente esse recurso é candidato a ter provocado a tramitação jurídica mais rápida do mundo. Em apenas cinco dias, entrou na Justiça Eleitoral, desembarcou na Corte Suprema e foi aprovado na Sala Constitucional, instância máxima de decisões. Dos 16 juízes da corte, oito são simpatizantes de Ortega, um morreu recentemente e os outros sete são visceralmente contra o presidente.
O argumento de Ortega para entrar com o recurso foi simples: a lei deve ser igual para todos, especialmente para garantir o direito de eleger e de ser eleito, a qualquer tempo e a qualquer hora. Na sessão estavam seis juízes orteguistas. Os juízes da oposição garantem que não foram convocados e se apressaram em dar uma resposta tão simples quanto o recurso do presidente: foi um golpe.
Dada a sentença, a militância sandinista ocupou as principais avenidas de Manágua para mostrar seu júbilo. Do outro lado, a imprensa, os empresários e os partidos de oposição, incluindo os dissidentes sandinistas, decretaram o fim de qualquer esperança para se alcançar um ambiente democrático estável. “Não aceitaremos a violação da Constituição”, disse um irritado Eduardo Montealegre, forte candidato da oposição às eleições de 2011. “É uma armadilha, talvez a coisa mais espantosa que o país já assistiu”, afirmou o juiz Alberto Valcerde, alinhado com o grupo anti-sandinista da Corte.
Traumas
O resultado desse embate é tão previsível quanto o “gallopinto”, uma mistura de arroz com feijão que serve como base do café da manhã dos nicaragüenses. Na prática, a decisão obedece a uma tentativa de perpetuação no governo da ala orteguista da FSLN que ainda não se recuperou do trauma da derrota na eleição de 1990, que abriu caminho para um ciclo neoliberal que durou 16 anos. Nesse período, as principais conquistas da revolução voltaram para trás. A Nicarágua saiu do neoliberalismo mais pobre do que entrou.
Sem dispor da energia revolucionária de antigamente, que tanta simpatia angariou pelo mundo afora na década de 80, os sandinistas parecem preferir o caminho mais fácil das artimanhas jurídicas. Numa América Latina onde se multiplica a tendência ao terceiro mandato, à esquerda e à direita, não chega a ser surpresa a jogada de Daniel Ortega. A questão agora é saber se esta medida será capaz de promover a hegemonia política que a FSLN um dia teve no país. A julgar pela tensão que se seguiu à decisão da Justiça, é um caminho perigoso.
*Marco Piva é jornalista e mestrando do Programa de Integração para a América Latina da USP. Escreveu “Nicarágua: um povo e sua história” (Edições Paulinas).
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