É verdade que, como dizia Michael Jackson, não importa se você é branco ou negro? Mais ou menos, parece insinuar Erykah Badu, uma cantora texana (e negra) de 39 anos que há três meses causou seu quinhão de controvérsia numa arena pop feminina atualmente ultracompetitiva e hiperpopulada por jovens cantoras brancas (Lady Gaga), negras (Beyoncé, Rihanna), hispânicas (Christina Aguilera), asiáticas (M.I.A.)…
Erykah trouxe originalidade ao cenário da soul music e do rhythm’n’blues em 1997, ao conseguir manter um pé na erudição do jazz e outro na crueza do hip-hop, sem por isso soar desarmônica ou contraditória. Em fevereiro de 2008, nove meses antes da eleição do presidente Barack Obama, lançou um disco chamado New Amerykah, Part One (4th World War), cujo título fazia esperar algum tipo de manifestação por uma “nova América”, talvez mais negra, quiçá menos branqueada, quem sabe mais Obama.
Assista ao clipe de Window Seat:
De fato, o CD entremeava canções íntimas e amorosas com outras de preocupação explícita com a condição negra. Mas a “AmErykah” que se insinuava de letras fortes como as de Soldier, Twinkle, That Hump e The Cell era ainda povoada por drogas, pobreza, dificuldades de sobrevivência, abandono, injustiça. “Eles nos mantêm deseducados, doentes e deprimidos”, denunciava em Twinkle, referindo-se a uma América (do Norte, Central ou do Sul, tanto faz) mais para velha que para nova. Seu imaginário não tinha e não tem nada a ver com, por exemplo, o triunfalismo “platinum blonde” de uma Lady Gaga.
Em março deste ano, veio New Amerykah, Part Two (Return of the Ankh), e o máximo que um ano e meio de Obama parece ter feito pela “Amerykah” de Erykah foi soterrar as letras de intenção mais engajada dez andares abaixo das baladas de desilusão e infelicidade amorosa. Na faixa Window Seat, indefinida entre a temática amorosa e a desamorosa, a narradora até pede um assento na janela do avião, “sem ninguém perto de mim”, mas não vai muito além disso.
Window Seat, no entanto, foi lançada antes como videoclipe, e aí residiu o naco de polêmica e provocação lançada por Erykah em direção à sua “novAmérica”. Enquanto os versos tristonhos se sucedem, a artista aparentemente se limita a andar pela rua, calada, sem emitir nenhum som de suas cordas vocais de bisneta de Billie Holiday. Estamos em sua cidade natal, Dallas, e conforme caminha ela vai tirando a própria roupa, peça por peça, até ficar completamente nua (e, sim, vozes conterrâneas conservadoras se ergueram para denunciar o atentado à moral e aos bons costumes praticado pela moça). Pouco depois de tirar a última peça (a calcinha), ela tomba, alvejada por um tiro à queima-roupa. Estamos no lugar quase exato onde foi assassinado, em 1963, o então presidente da República John F. Kennedy. As vozes moralistas falaram em atentado ao pudor, mas havia um pouco mais do que isso no incômodo causado pela cantora.
Não é fácil, quanto mais para um brasileiro, captar o que Erykah Badu
quis dizer com essa declaração. É evidente uma carga sombria,
pessimista, de alguém que talvez não acredite tanto assim no “black
power” de um Obama na Casa, er, Branca. A violência, marca distintiva
da América estadunidense (a “old” e a “new”), alista Erykah no mesmo
exército de soldadas tipo Hillary Clinton formado hoje por Gagas,
Aguileras e M.I.A.s. Mas, se Gaga se diverte e diverte a geral
distribuindo assassinatos e sutiãs ornados com fuzis, em Window Seat a
assassinada é a própria dona (negra) do clipe.
Faz quase 50 anos que as leis de segregação racial foram formalmente
extintas nos EUA, inclusive no sul explicitamente racista onde nasceu
Erykah Badu – mas, não, ela ainda não sente que o lugar mais nobre à
janela possa lhe pertencer. Já faz um ano que o black-and-white Michael
Jackson se foi – mas, não, ainda não se pode dizer que tanto faz ser
branco ou negro, nem mesmo ao pé da Estátua da Liberdade.
*Pedro Alexandre Sanches é jornalista e crítico musical. Escreve no Opera Mundi e no seu blog pessoal.
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