“Prego, prego, signori, um pouco de atenção.”
É com essa frase, saída da boca de um personagem figurante, que o cineasta italiano Marco Belocchio abre o seu mais novo filme, Vincere. A história começa nos anos que antecedem a ascensão do fascismo na Itália e, neste momento, Benito Mussolini era um aguerrido militante socialista que enfrentava católicos e policiais com a mesma ousadia que usou para conquistar Ida Dalser.
Mas esta não é uma história de amor, nem de um amor não correspondido. Esta é uma história política. E a história política presente no filme, ainda que clara para os italianos, hoje nos parece um pouco obscura.
Trailer do filme Vincere:
Na cena em que o ator que faz o jovem Mussolini, Filippo Timi, grita a clássica frase de que vai enforcar o rei com as tripas do último padre, muita coisa ocorria na Itália. Eram os conturbados anos que antecederam a Primeira Grande Guerra. O país, unificado apenas no século XIX, vivia um clima de grande instabilidade política. Mussolini, nascido em 1883, cresceu numa era de grandes escândalos bancários e de repressão de uma máquina estatal corrupta e desorganizada. O jovem país tinha fortes ambições imperialistas, mas poucos recursos, e era capitaneado por um uma monarquia que se julgava democrática.
Os efeitos de uma vaga democratizante (benefícios trabalhistas, sufrágio universal masculino) instituída pelos governos de Giovanni Giolitti para controlar a crescente insatisfação popular apenas alimentavam a fúria crescente do partido socialista italiano, criado em 1895, e que, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, insuflava as greves radicais. Aliados às pressões por transformações radicais estavam os artistas futuristas, com Filippo Marinetti à frente.
Idílio
Ida e Benito Mussolini ainda viviam o início de um idílio romântico quando ocorre a Semana Vermelha, que começou em Ancona em 7 de junho de 1914 e se espalhou pelo país, ganhando a forma de uma greve geral e de princípio de rebelião popular, num movimento crescente que preocupava os líderes sindicalistas e socialistas, temerosos de perder o controle sobre a massa. Neste momento, Mussolini, diretor do jornal socialista Avanti!, é um dos radicais do partido, mas, em poucos meses, mudaria de opinião radicalmente, passando a apoiar a entrada do país na guerra e contrariando a política internacionalista e pacificista dos socialistas.
Morria o líder socialista radical, nascia o líder fascista.
No filme, a ruptura é marcada por uma calorosa discussão de Mussolini com outros membros do partido. Enérgico, o dissidente Mussolini expõe sua posição como um cão raivoso com ambições napoleônicas: a entrada na guerra possibilitaria um aumento de importância italiana no cenário internacional e também um provável aumento de território, além de destruir os velhos conservadores do regime de Gigliotti, dando espaço a novos acordos políticos.
Ascensão
Mussolini recebeu ajuda de alguns industriais, como os da rica família de Ida Dalser, para abrir seu novo jornal, Il Popolo d´Italia. A ajuda financeira também vinha dos serviços secretos britânicos e franceses, para forçar a entrada da Itália na guerra. Gigliotti saiu do governo, e a Itália pegou em armas.
Em 1º de janeiro de 1915, Mussolini divulgava seu primeiro manifesto, “Fasci d’Azione Rivoluzionaria”, e pouco tempo depois aconteceu o primeiro congresso fascista em Milão. Ida Dalser teve seu filho, Benito Albino Mussolini, e suspeita-se que eles se casaram em segredo. Durante a Primeira Guerra, Ida foi reconhecida pelo governo italiano como mulher oficial de Mussolini. Mas, depois, já como herói nacional por ter sobrevivido à explosão de uma granada, o líder fascista não precisava de uma mulher rica e instruída, que lembrava sua juventude socialista e seus acordos secretos com potências internacionais. Na pobre e quase analfabeta Rachele Guidi, Mussolini encontrou a companheira ideal. Teve com ela uma filha ilegítima, Edda, e, depois de casados, vieram os outros quatro filhos.
Ida Dalser o incomodava. Lembrava seus anos como socialista, frágil e dependente financeiramente. O filme continua com a luta pelo reconhecimento de Ida como esposa e de seu filho como legítimo herdeiro do Duce, paralelamente à ascensão do fascismo. O silêncio a que Ida é submetida pelo poder de Estado, pela Igreja e pelos médicos funciona, assim, como uma metonímia da opressão amoral sobre toda a Itália pelo fascismo. Num paralelo de imagens marcantes, Ida, num internada num sanatório como louca, joga grãos de milho contra as galinhas das freiras, enquanto Rachele diverte-se, no palácio de Mussolini, alimentando outras galinhas – igualmente presa, dentro de um poleiro.
Tempos de falar
O fascismo foi largamente analisado por inúmeros teóricos de esquerda, de Antonio Gramsci a Ernest Mandel, passando por Leon Trotsky e pelo peruano José Carlos Mariátegui, que, como jornalista, narrou e analisou em crônicas os acontecimentos que fizeram crescer o poder de Mussolini nos anos 1920.
Agora, o cinema, com Marco Belocchio, dá seu recado. Outra fala marcante, do filme, é dita por um psiquiatra de Veneza, que, ingenuamente, tenta convencer Ida a ceder para que ela possa deixar o sanatório. Ele diz: “Existem tempos de falar e tempos de se calar. Ou você acha que o fascismo irá durar para sempre?”.
Para Belocchio, agora são tempos se falar. E ele falou com seu filme. Ou vocês acham que o governo de Berlusconi irá durar para sempre?
*Joana Monteleone é historiadora.
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