Bruce Springsteen tornou-se uma celebridade planetária em 1984, quando seu rock Born in the U.S.A. disseminou-se pelo mundo como um manifesto sobre o orgulho de ser um rebento dos Estados Unidos da América. Gravado na Inglaterra, o extenso DVD London Calling – Live in Hyde Park, começa não por Born in the U.S.A., mas por London Calling, do grupo britânico The Clash, um dos ícones máximos da rebelião punk do final dos anos 1970.
Passam-se 30 rocks pelo show de Bruce, e Born in the U.S.A. não vem.
Não é de estranhar que o artista a evite. Por mais que sua canção mais popular seja ouvida como um hino, ela nunca foi exatamente isso. Filho de um motorista de ônibus, Bruce, hoje com 61 anos, foi lançado em 1973 como cantor e compositor de rocks puxados para o country e o folk, e sempre identificado com a figura do pária – muitas vezes na primeira pessoa, suas letras davam vida a marginais, arruaceiros, rebeldes sem causa, rebeldes com causa, desempregados que viram assassinos…
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Em Born in the U.S.A.,falava como um cidadão desassistido que se sentia como “um cachorro que apanhou demais”, lembrava com horror da guerra do Vietnã e era “enviado para uma terra estrangeira/ para matar o homem amarelo”. O rock seguia as pegadas de seu grande sucesso anterior, Born to Run, (1975), com a constação de que “vagabundos como nós nasceram para correr” (dessa canção ele não fugiu no concerto londrino). Um porta-voz da marginália: era como Bruce se colocava para galgar o topo das paradas.
O presidente republicano Ronald Reagan (1981-1989) estava em campanha reeleitoral e se identificou com a letra e/ou com o sucesso de Bruce, que à época vencia Madonna com facilidade e era páreo para Michael Jackson. A pecha colou, ainda que o artista tentasse se desvencilhar de qualquer conexão com o Partido Republicano. A persona do fora-da-lei por convicção era retorcida pelos anos Reagan, rumo ao adorado retrato do “self-made man”, do típico norte-americano orgulhoso de seu voluntarismo. Ter de ir para a guerra era o queixume do personagem, mas a nação belicosa o convencia de que era a guerra que o transformava em homem feito e em orgulho da nação.
Bruce, que na entrada dos anos 1980 parecera anacrônico e ultrapassado frente à anarquia punk de The Clash, Sex Pistols e outros, virou, à revelia, símbolo do yuppismo e do belicismo da pátria da qual se sentia pária. Formalmente conservador, fazia – e faz até hoje – rocks clássicos de grande, imensa dimensão. Mas, no choque entre o personagem desajustado e o intérprete que cabia como luva no papel de super-herói capitalista, fez-se um híbrido algo confuso e paradoxal, que ornamentava a capa de Born in the U.S.A. com as cores da bandeira dos EUA, mas não queria ser misturado à era Reagan.
O pária e o garoto dourado eram a mesma pessoa, e Bruce parece nunca ter digerido bem a ambiguidade de seu papel na história daquele tempo naquele país. Em 2008, engajou-se explicitamente na campanha do democrata Barack Obama: fez shows para o Partido Democrata, cantou na cerimônia de posse do primeiro presidente negro dos EUA. Levou consigo para aquele palco festivo o velho artista folk Pete Seeger, um esquerdista ortodoxo que em meados dos anos 1960 se viu lançado à obscuridade ao perder para Bob Dylan a queda de braço na busca pelo espírito do tempo. Artista amplamente influenciado por Bob, Bruce fizera em 2006 um tributo pela reabilitação de Pete, dedicando a seus bravos e cortantes folks de esquerda o disco We Shall Overcome – The Seeger Sessions.
Uma semana após a posse de Obama, Bruce lançou o belíssimo álbum Working on a Dream. Outlaw Pete, a música de abertura (presente também no DVD recém-lançado), Outlaw Pete, fala, na terceira pessoa, de um fora-da-lei que, após anos de história, “pensa que mudou, mas não mudou”. O Pete da história talvez remetesse simbolicamente a Seeger, ou quem sabe ao próprio Springsteen – ou a qualquer desajustado que viva a bradar contra as injustiças do mundo, mesmo fazendo parte de seu núcleo duro.
Difícil saber quanto o autor de Born in the U.S.A. mudou ou não mudou para chegar ao narrador de Outlaw Pete. A ausência do “hino” de 1984 no DVD é gritante – não é por aquela música que ele quer ser lembrado pela história ou reverenciado pela multidão a lhe fazer fundo impactante nas imagens gravadas no Hyde Park. Mas, em vez de Born in the U.S.A., coloca em evidência a London Calling do Clash, tema de abertura do show.
Faz todo sentido para Outlaw Bruce – o Clash vinha de raízes proletárias como as dele, e professava em London Calling alguma espécie progressista de revolução, levante ou rebelião. Mas Bruce não é nem nunca foi punk, e o aviso de que “a guerra agora está declarada”, mesmo em chão europeu e não americano, faz pensar, aqui e agora, não em punks de cabelo moicano, mas no Obama em quem Springsteen apostou suas fichas. De modo análogo ao que acontecia em 1984, a raiva com que Bruce Springsteen apresenta London Calling se comunica diretamente com o olhar ambíguo – e nitidamente belicoso – do atual presidente dos Estados Unidos em direção ao “homem amarelo” do Irã.
Ouça
Born in the U.S.A.:
*Pedro Alexandre Sanches é jornalista e crítico musical. Escreve no Opera Mundi e no seu blog pessoal.
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