Às 14h46 da sexta-feira passada (11/03), hora local, o nordeste do Japão foi atingido por um terremoto de 9,0 graus na escala Richter cujo epicentro foi bem próximo ao litoral e a poucos quilômetros abaixo da crosta terrestre, o maior que se tem registro histórico a atingir uma área densamente populosa e com alto desenvolvimento industrial. Mesmo para um país de alto risco sísmico e cuja cultura e tecnologia se adaptaram para tornar este risco aceitável, tal evento, numa escala de probabilidade de 1 em cada mil anos, superou toda capacidade de resposta desenvolvida ao longo de séculos pelo Japão.
Como era previsível, dado que nenhum projeto de engenharia é dimensionado para resistir a um evento de tal grandeza, a maior parte das construções e todas as instalações industriais com riscos de explosões e liberação de produtos tóxicos ao meio ambiente localizadas na região colapsaram imediatamente – tais como refinarias de óleo, depósitos de combustíveis, usinas termoelétricas e indústrias químicas. Causaram dezenas de milhares de mortes e um dano ambiental impossível de ser determinado no momento.
Somente as 14 usinas de geração elétrica distribuídas pelas três centrais nucleares da região afetada: Onagawa (três unidades), Fukushima Daini (com quatro), Fukushima Daiichi (com seis) e Tokai (uma unidade), todas do tipo BWR, que representa 20% da frota mundial de 440 usinas (60% do tipo PWR, dentre as quais as brasileiras, 10% do tipo PHWR, a água pesada e 10% de outros tipos ) resistiram às titânicas forças liberadas pela natureza, todas tendo desligado automaticamente e se colocado em modo seguro de resfriamento, mesmo após ter sido perdida toda a alimentação elétrica externa.
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Entretanto, cerca de uma hora depois do terremoto, ocorreu um efeito colateral de grandeza inesperada: uma onda tsunami que alcançou 10 metros de altura varreu a costa, penetrando vários quilômetros terra adentro, que é particularmente plana. Este outro evento de probabilidade multimilimétrica varreu os destroços de construções e instalações industriais juntamente com as centenas de milhares de desabrigados deixados pelo terremoto.
As oito usinas das centrais nucleares de Onagawa, Fukushima Daini e Tokai conseguiram resistir a mais esse evento para o qual não foram projetadas. Entretanto, as seis usinas de Fukushima Daiichi não foram capazes de superá-lo. O tsunami colocou fora de operação todos os mais de uma dezena de diesel-geradores disponíveis no local, bem como seus tanques de combustível, interrompendo o processo de resfriamento que vinha sendo conduzido com êxito. Este fato tem levado a uma sequência de problemas graves que tem impedido, até o momento, que as usinas atinjam uma condição segura. As recentes notícias de restabelecimento da alimentação elétrica externa fazem, entretanto, acreditar que essa condição venha a ser atingida nos próximos dias.
Em resposta aos problemas iniciais enfrentados pela unidade 1 de Fukushima Daiichi, o governo japonês acionou o Plano de Emergência Externo da central, retirando preventivamente os já desabrigados habitantes da primeira zona de cinco quilômetros de raio em torno do reator avariado. Vendo a situação se agravar na unidade 1 e iniciarem-se problemas semelhantes nas unidades 2 e 3, o raio de evacuação preventivo foi ampliado inicialmente para 10 e depois para 20 quilômetros (com as populações entre 20 e 30 quilômetros colocadas sob abrigagem), o que ultrapassa as ações previstas por normas internacionais que regem o planejamento de emergência nuclear (evacuação máxima em 5 km, abrigagem em 15km), na medida que esses procedimentos foram concebidos para um acidente grave em uma usina, e não em várias simultaneamente na mesma central.
Essas ações do governo Japonês são compatíveis com o fato do acidente ter sido inicialmente classificado pela Nisa (Autoridade de Segurança Nuclear Nacional) como classe 4 e posteriormente agravado para classe 5 na escala internacional INES (International Nuclear Event Scale). Notícias divulgadas pela mídia sobre classificação do acidente como classe 6 não são baseadas em dados oficiais.
O governo japonês, em um esforço inimaginável, conseguir concluir a retirada de mais de cem mil vítimas sobreviventes ao terremoto e tsunami dos 20 quilômetros no entorno da central nuclear em poucos dias, mesmo enfrentando toda a destruição previamente causada na região. Essa tarefa hercúlea garantiu que, mesmo que venha a acontecer uma liberação importante de materiais radioativos, as populações que seriam afetadas estejam a salvo dos efeitos decorrentes.
Os recentes resultados da monitoramento de taxas de dose no entorno de 30 quilômetros da central demonstram que os níveis não são alarmantes e estão decrescendo, o que faz com que todas as atenções sejam voltadas ao restabelecimento da energia externa e à retomada do resfriamento em condições satisfatórias.
Que lições podem ser aprendidas pela indústria nuclear até o momento? A primeira delas é que as usinas nucleares são as construções humanas melhor adaptadas a resistir a eventos naturais de grande severidade, como mostram as centrais de Onagawa, Fukushima Daini e Tokai. Outra é que a resistência das usinas nucleares localizadas em áreas de alto risco sísmico, especialmente aquelas em zonas costeiras sujeitas a tsunamis, que são muito poucas dentre as 440 em operação no mundo, deve ser reavaliada e, eventualmente, reforçada.
Certamente, passada a fase acidental que ainda vivemos, a análise técnica profunda do evento levará a muitas outras lições aplicáveis não só as usinas do tipo BWR, mas também às demais em operação, bem com àquelas que estão em projeto e construção, aperfeiçoando a segurança num processo de melhoria contínua. Isso ocorre sistematicamente na indústria nuclear mesmo para eventos pouco significativos, quanto em mais em eventos severos como o que se vivencia hoje. Foi assim para os acidentes de Three Miles Island em 1979 nos EUA e de Chernobyl, na ex-URSS.
Note-se que quaisquer comparações do que pode ainda vir a ocorrer em Fukushima Daiichi com o que ocorreu em Chernobyl não são tecnicamente corretas, na medida em que, naquele trágico acidente, os materiais radioativos foram dispersos em grande quantidade e a grandes distâncias devido à energia liberada pelo incêndio de centenas de toneladas de grafite que havia no interior do reator, que levou vários dias para ser apagado, ao custo da vida de dezenas de heróicos “terminators”.
Em um reator a água, que não usa grafite nem outra forma de acumulação de grande quantidade de energia liberável em curto período, como são os BWR afetados e os PWR que juntos compõe cerca de 90% da frota mundial, não existe energia disponível para tal dispersão. No pior caso, essa dispersão se limitaria ao raio de evacuação e, em menor quantidade, ao raio de abrigagem já estabelecidos na região.
Demandas por ações imediatas no sentido de desligar usinas em operação ou interromper obras de usinas em construção são precipitadas pelo clima catastrofista que tem sido predominante na divulgação do evento pela mídia, que influencia fortemente a opinião pública, ou deflagradas por razões de natureza política e ideológica, as quais, ainda que legítimas nas sociedades democráticas, não encontram fundamento técnico que as suportem.
Isto porque, mesmo no contexto da tragédia que se abateu sob o Japão, a maioria das usinas nucleares afetadas permanece em condição segura, não implicando em nenhuma consequência adicional às populações já atingidas e aquelas, em minoria, que não resistiram plenamente, tiveram suas consequências mitigadas pelo acionamento de um Plano de Emergência Externo ampliado, que está protegendo as populações evacuadas mesmo para as condições em que venha a ocorrer o pior caso de liberação de material radioativo, o que até o presente não ocorreu e as informações atuais indicam que não ocorrerá.
Obviamente, esses poucos argumentos técnicos não encerram o debate. Nas sociedades democráticas, como a brasileira, ele está apenas se iniciando e deverá resultar numa indústria nuclear ainda mais segura. Nenhuma nuvem radioativa que represente ameaça real à população saiu de Fukushima, mas a nuvem política e econômica alcança todos os países. Devemos, portanto, nos precaver de decisões precipitadas, tomadas pelo calor da emoção ou por oportunismo, que venham a prejudicar as próprias sociedades às quais se pretende defender, como seria o caso de uma “proscrição” da geração elétrica nuclear, com paralisação de usinas em operação e de projetos em construção e em planejamento.
*Doutor em Engenharia Naval e Mestre em Engenharia Nuclear. Assessor da
Presidência da Eletrobrás Eletronuclear e membro do Grupo Permanente de
Assessoria da Agência Internacional de Energia Atômica.
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