Enquanto se espera a decisão do Equador sobre o pedido de asilo de Julian Assange, o que se vê é que as autoridades britânicas não sabem muito bem o que fazer com o caso.
De fato, ele tem pelo menos um aspecto inusitado. É a primeira vez, pelo menos desde a instituição do moderno direito de asilo, que alguém pede proteção à embaixada de outro país, em Londres, em parte contra o Estado do Reino Unido.
Várias vezes o Reino Unido concedeu asilo a perseguidos e expatriados: até a Karl Marx, no século XIX, e a muitos alemães e austríacos foragidos do nazismo durante a Segunda Guerra. Mas agora Londres reage com alguma perplexidade diante do fato de que é o regime britânico (inclusive seu Poder Judiciário) que é acusado, perante a opinião pública mundial, de participar de um assalto aos direitos humanos de um cidadão admitido como residente em seu território.
A iniciativa do caso está com a promotoria sueca, em particular com a promotora Marianne Ny, que em setembro de 2011 reabriu o caso das acusações de abuso sexual contra Assange, depois que a primeira promotora a agir sobre o caso, Eva Finne, considerou as acusações improcedentes. Esse “detalhe” é uma das bases das alegações de Assange de que há uma “armação” contra ele, pois nessa época já se avolumavam as pressões norte-americanas contra o WikiLeaks pelas revelações sobre atrocidades nas guerras do Afeganistão e do Iraque.
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Em dezembro daquele ano, depois que o WikiLeaks, o New York Times, The Guardian e Der Spiegel trouxeram a público, com a chancela do primeiro, mais de 250 mil documentos até então secretos da diplomacia norte-americana, muitos deles mais constrangedores do que ameaçadores, a pressão aumentou e a promotoria sueca entrou com o pedido de extradição junto ao Reino Unido.
A reação inicial do Foreign Office de Londres, dizendo que o caso de Assange era para ser resolvido no Judiciário e na Polícia, e a declaração desta de que ele seria preso por ter violado os termos de sua detenção domiciliar, mas que seria respeitada a integridade da Embaixada do Equador, seriam cômicas se não fossem trágicas. É uma reação que lembra, na verdade, a concepção medieval de asilo, instituída oficialmente pelo Concílio de Orleãs, em 511 d. C. A Inglaterra aderiu oficialmente a essa concepção no ano de 600 d. C. Declarava ela a inviolabilidade das igrejas e da casa de um bispo; quem nelas buscasse refúgio não poderia ser preso, mesmo que fosse um escravo fugido. Mas no caso deste, pelo menos, poderia haver a sua restituição ao dono desde que este jurasse sobre a Bíblia que não seria cruel.
É a consideração que alguns juristas vêm levantando como “solução” para o caso Assange: se a Suécia se comprometer a não extraditá-lo para os Estados Unidos (onde o soldado Bradley Manning acusado de alta traição por ter entregue documentos ao Wikileaks, está ameaçado de prisão perpétua), Assange poderia muito bem ser levado para Estocolmo sem maiores problemas, nem legais, nem de consciência.
O direito de asilo e o seu alcance, bem como onde e como ele pode ser concedido, hoje é regulado, a partir da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, por uma série de convenções, entre elas a de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1956. Ela prevê a inviolabilidade (não a extra-territorialidade) de uma Embaixada, bem como da residência do Embaixador. Ou seja, a polícia só pode lá entrar com permissão do país titular da Embaixada.
Juristas ouvidos sobre o caso argumentam que Assange pode ser preso sim, se ele puser o pé fora da Embaixada, mesmo que esteja no carro da Embaixatriz, porque no veículo a inviolabilidade só é estendida a quem tenha passaporte diplomático. E, continuam argumentando esses juristas, se o Equador der a Assange um passaporte diplomático, então seu pedido de asilo é nulo, porque ele não pode asilar-se na Embaixada de seu próprio país (esse argumento me parece muito dúbio, para dizer o mínimo).
Todo esse emaranhado de argumentos põe fora de foco o principal tema, que é o da alegação de estar sendo violado um direito fundamental de qualquer cidadão no mundo inteiro, e dele estar pedindo asilo por estar se julgando sob risco (até de vida). Também ignora a prática de governos darem salvo-condutos, nesses casos, para que os asilados possam se dirigir a um aeroporto, acompanhados pelo Emabaixador ou Embaixatriz, e deixar o país.
Mas há mais. Como já apontou a jornalista Amy Goodman, do Democracy Now, esse emaranhado de argumentos em torno de tecnicalidades legais ignora a própria ação anterior do governo britânico num caso análogo, mas com outras implicações políticas. Em 2000, instado pela ex-primeira ministra Margareth Thatcher e pelo ex-presidente George Bush, o governo britânico, através de seu Ministro do Interior Jack Straw, literalmente atropelou o Judiciário britânico e a Câmara dos Lordes, liberando o ex-ditador Augusto Pinochet, cuja extradição fora pedida pelo juiz Baltasar Garzón, da Espanha, para retornar ao Chile, alegando motivos de saúde, sob uma chuva de protestos internacionais.
Como disse Amy Goodman, para um genocida, a liberdade; para um ativista da mídia, a prisão e “o rigor da lei”…
*Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.