Gabo: escritor e jornalista, colombiano e latino-americano, gênio cosmopolita e menino de cidade pequena, prêmio Nobel e amigo de alguém que você já conheceu, autor de histórias que, de tão mágicas, são absolutamente reais. Histórias absurdas de cidades fictícias, onde se repetem a esmo os dias e os nomes dos habitantes e nada parece dizer respeito à sua vida, exceto que você podia jurar que já passou por lá – ou que talvez tenha sonhado com esse lugar e é capaz de caminhar confiante por suas ruas. Quem não conhece Gabriel García Márquez? Se existe alguém que diga “eu” a essa pergunta, essa pessoa tampouco sabe o que é um livro. E aí não há razão para discutir.
Em um primeiro momento, não é preciso lê-lo para conhecê-lo. O que ele escreveu foi sendo contado a você durante toda a sua vida, ainda que você não fizesse ideia disso. É parte pulsante do cotidiano que você vive, do ar que respira, e isso fica claro quando, um belo dia, você passeia pela adolescência com um pouco mais de curiosidade e se deixa levar por uma estante inofensiva de livraria, onde se depara com um livro qualquer que diz: “Cem anos de solidão”. O título é um golpe, já de entrada, e faz você pensar nessa condição tão humana de ser uma alma a mais no mundo, caminhando a esmo, e que isso dure 100 anos mostra que a coisa é ampla, é um caso definitivamente a se analisar.
Leia mais: Top 10: livros essenciais para entender Gabriel García Márquez
Você folheia e descobre o começo: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo”. Com sorte, ao terminar o trecho, a mágica já está operando e logo no primeiro primeiro contato com esse tal autor, você se entrega a essa música agradável, essa entonação única que torna ler uma palavra atrás da outra algo que produz “cosquinhas”. Descobre muitos livros mais, “Crônica de uma morte anunciada”, “O amor nos tempos do cólera”, “Do amor e outros demônios”, e tudo passa a fazer sentido.
Foi-se deste mundo, no último 17 de abril, Gabriel García Márquez, graças às complicações de um câncer diagnosticado há tempos, mas que de certa maneira o permitiu “viver para contar” – como diz sua autobiografia – até os 87 anos. Nascido em Aracataca, uma cidade do norte da Colômbia, no Caribe, que só figura no mapa porque virou a fictícia “Macondo”, Gabo fez-se primeiro jornalista e depois escritor. No primeiro caso, aferrou-se à realidade, escrevendo para jornais como El Universal, onde debutou, em Cartagena, e El Espectador, em Bogotá, e foi correspondente internacional na Europa e nos Estados Unidos. Descobriu-se logo aferrado à letra, amante da palavra, e passou a ser autor de ficção, com contos como “La tercera resignación”, sua estreia literária em 1947, e romances como “La Hojarasca”, seu primeiro livro, lançado em 1955.
NULL
NULL
Todas as suas histórias, antes e depois de “Cem anos de solidão”, de 1967, já guardavam o sabor de sua prosa exata, atenta aos fatos, e ainda assim tão melódica e envolvente, sem se perder em divagações teóricas ou em longas explicações – ainda que pareça fruto de uma imaginação tão mirabolante. Obviamente, quando ele ganha o Nobel em 1982, já era um escritor conhecido e admirado mundialmente, transbordando as fronteiras latino-americanas, e as colombianas, nem falar. Ele, o segundo latino-americano a ganhar um prêmio Nobel, depois do Pablo Neruda – e não com a mente poética do chileno, mas com outro tipo de brilho e uma obra mais tarde considerada uma autêntica “bíblia pagã do Caribe”, tamanha sua capacidade de descrever e ao mesmo tempo fabular uma realidade local de sabores incrivelmente universais.
Gabo foi mito e foi mundano. Criou com outros grandes pensadores a Escola de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba, de quem foi muito próximo ao longo de toda uma vida aliada politicamente à esquerda e às profundas necessidades da América Latina. Deixou em Cartagena, onde morou antes de viajar como correspondente e mais tarde instalar-se definitivamente no México, onde viveu mais de 30 anos antes de falecer, a Fundação para o Novo Jornalismo Ibero-Americano, onde se formam jornalistas a cada ano sob seus ricos ensinamentos e seu olhar despretensioso.
Leia também: Políticos, escritores e celebridades lamentam a morte de García Márquez
Suspeito que ele será para sempre, e de fato, a maravilha que sua literatura eternamente nos permitirá recordar – e só.
Quando vivi na Colômbia, anos distante da adolescente que se encantou primeiro com as palavras “Cem anos de solidão” dispostas uma atrás da outra e depois com cidadezinha louca que tão pouco e tanto me dizia respeito, escutei algumas vezes que era demasiado “o peso de um García Márquez”. Tinha a sensação de que as pessoas, às vezes sufocadas por tanta fama, se sentiam atores em um filme de realismo mágico sobre elas mesmas e queriam se desgarrar. Não à toa, foram essas mesmas pessoas as primeiras a manifestar pra mim a imensa dor de perder “seu” Gabo, sentindo-se órfãs de alguém que inventou muito sobre elas, mas viveu, também, com elas.
Nos sentimos todos agora sozinhos, e cem anos nos levarão adiante, mas não bastarão pra aplacar a saudade.