Em 22 de julho de 2014, o governo francês, no contexto de ataques crescentes a locais de culto e escolas judaicas, viu-se forçado a declarar que a França não era um país antissemita. Houve 169 crimes contra judeus nesse país no primeiro trimestre deste ano, um aumento de 44% em relação ao mesmo período em 2013, reportou a imprensa. Dias depois, o ministro do Interior da França, Bernard Cazeneuve, anunciou a proibição de manifestações de solidariedade à população de Gaza, à mercê de nova ofensiva israelense, iniciada em 8 de julho de 2014. Até o momento em que escrevo este texto, a ofensiva já deixou mais de 1.300 palestinos mortos, sendo mais de duzentas crianças. O pretexto de Cazeneuve foi o receio de que, potencialmente, protestos pró-palestinos insuflassem ainda mais a onda antissemita na França. Proibidas, as manifestações ocorreram, convocadas por organizações de extrema esquerda, e foram reprimidas pela polícia.
Em 26 de julho de 2014, começou a circular em sites ligados ao partido de extrema direita francês Front National [Frente Nacional] o panfleto “Ces juifs qui dominent la France” [Esses judeus que dominam a França], com o título em capitulares. Não é a primeira vez nem será a última que textos desse tipo surgem e surgirão na internet. Aliás, fui informado que o panfleto de 26 de julho é a versão completada de algo similar veiculado em 2012. O que chamou minha atenção a esse documento é que nele consta o nome de meu pai.
“A França não é mais o que ela costumava ser. Não pertence mais aos franceses. Está minada por dentro e é o lobby judaico-sionista que a dirige como quer”, começa o panfleto. Rodeado de propagandas do Front National, vitorioso nas eleições para o Parlamento europeu de 2014, segue o texto: “Os judeus estão realmente em toda parte, controlando as rédeas do poder. Mas onde verdadeiramente primam é na manipulação e na ocupação de posições de poder, graças à solidariedade tribal. São fortes apenas pelo enfraquecimento dos outros, pela exclusão dos autóctones de postos-chave em seu próprio país. É por isso que precisam dividir os autóctones, culpando-os para desmoralizá-los. Seu controle das mídias oferece-lhes os meios de uma propaganda de massa e onipresente. É também para isso que lhes serve a monstruosa mentira da ‘Shoah’, sua espada e seu escudo. Sentindo-se ameaçados, real ou supostamente (até mesmo, muitas vezes, autoprovocada, tanto são os ganhos com isso), em resposta do menor sinal de reprovação daqueles que dominam, brandem o estandarte do HolocaustoTM”. Apresenta enfim uma lista ordenada por sobrenome, de Abecassis a Zerah, com 310 pessoas, “uma simples amostra que poderia facilmente ser estendida”, dos tais judeus que controlam a França.
Na linha 248 da lista, lê-se: “PESCHANSKI, Marc. Membre du bureau politique de Lutte ouvrière (trotskyste). Il est originaire de Moldavie” [PESCHANSKI, Marc. Membro do diretório político de Luta Operária (trotskista). É originário da Moldávia]. Lutte Ouvrière é o partido de extrema esquerda, efetivamente trotskista, do qual meu pai, um importante pesquisador em neurobiologia, é militante histórico.
Há várias curiosidades no modo como meu pai é descrito na tal linha 248, mas o que realmente me marcou é a última parte. “Originário da Moldávia?” Meu Marc Peschanski é nascido na França, onde viveu toda a sua vida, a não ser por um breve período nos Estados Unidos. Não me consta que tenha ido alguma vez à Moldávia e sei que não fala moldavo, aliás nem russo nem iídiche nem hebraico. É ateu, anticlerical fervoroso. Alertado sobre a publicação e o alastramento desse documento, respondeu com a voz dos seus mais de cinquenta anos de militância que era “uma clara provocação”, sem mais. Nosso sobrenome, porém, é de fato “quase” de origem moldava.
Descobrimos há poucos anos a origem de Peschanski (transliterado das mais diversas formas), que até então imaginávamos sem precisão “ucraniana”. Remonta ao que hoje conhecemos como Transnístria, no leste europeu. É uma região autodeclarada independente, de influência eslava, mas oficialmente reivindicada pela Moldávia (cuja língua é próxima ao romeno), e no correr da história disputada por poloneses, ucranianos, romenos e principalmente russos. A tensão na região é tanta que, provavelmente, se você disser a um transnitriano in loco que ele é moldavo, você comprará uma boa briga. Era comum que, a partir do século XIX, os Exércitos dessem aos judeus das áreas que invadiam o nome do senhor local a quem se aliavam, o que era uma forma de desonra. Assim, até recentemente, havia Peschanskis (provavelmente escrito de outra forma) não judeus, descendentes do senhorio local, mas estes, aparentemente instalados na Holanda, preferiram mudar seu nome para Van Pesky. Imagina-se que todos os Peschanskis, Pechanskys etc. que existem têm alguma ligação sanguínea conosco, de menos de quatro gerações. Assim, os Peschanskis somos de fato “quase” originários da Moldávia, sendo que a separação desse território com a Transnístria é apenas um rio, o Dniestre.
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A referência à Moldávia no panfleto é uma evidente tentativa de identificar o suposto judaísmo de meu pai, a desonra, que o vincularia aos não-franceses que, diz o texto, controlam a França e, deduz-se do texto, precisam ser extirpados. Revela também uma certa inteligência (bastante limitada, diria um transnitriano) e sugere a existência de um arquivo relativamente atualizado sobre as personalidades listadas. A ideia de que as informações sobre meu pai são renovadas remete, pode-se imaginar, à de que seus passos são controlados. Nesse caso específico, isso é curioso, já que nem mesmo nós, até recentemente, sabíamos da origem “quase” moldava de nosso sobrenome.
Não sabíamos com precisão a origem de nosso sobrenome e, de certo modo, não nos importávamos. Já meu avô, pai de meu pai, Alexandre Peschanski, comunista, herói da Resistência Francesa ao nazismo, sobrevivente dos campos de extermínio, aliás preso como comunista, não como judeu, não se importava e quase não falava de sua vida antes de tornar-se militante de esquerda. Como muitos jovens de famílias judaicas no fim do século XIX e início do século seguinte, chegada a adolescência fugiu da comunidade camponesa onde nascera e da tal “solidariedade tribal”. A decisão de fugir, abraçar outro tipo de vida, revoltada, politizada, muitas vezes marxista, mas também narodnik e anarquista, foi um fenômeno generalizado entre jovens de origem judaica no leste europeu nessa virada dos séculos, e é lindamente descrita como “le fléau du savoir” [o surto do saber] num livro sem tradução para o português com este título, de André Billy e Moïse Twersky (Paris, Les Bons Caractères, 2006), que relata a adesão não coordenada, mas simultânea, de adolescentes de famílias judaicas aos ideais modernos, progressistas, ateístas e igualitários que se alastravam pelo continente.
É nesse contexto que se desenvolve em alguma medida a teoria marxista, mostra entre outros aspectos da relação entre judaísmo e pensamento de esquerda Arlene Clemesha, em “Marxismo e judaísmo” (São Paulo, Boitempo, 1998). Aos doze anos, em 1920, meu avô fugiu de casa, revoltado, mas sem causa e sem rumo, e caminhou por meses até chegar a Bucareste, na Romênia. Nunca mais voltou a ver seus pais e irmãos, até onde se sabe todos assassinados em pogrons (ataques maciços contra pessoas) e campos de extermínio. Na capital romena, foi preso por vagabundagem e, como era então costumeiro, enviado a força para a Palestina, onde chegou entre 1922 e 1923. Aparentemente, ligou-se, ou no navio ou na chegada ao Oriente Médio, a um grupo sionista de esquerda, talvez próximo ao Ahdut HaAvoda, mas não foi um militante atuante. Fundamentalmente, tentava sobreviver. Trabalhou como operário, motorista de táxi e caminhão, agricultor. Ingressou no Histadrut, hoje a principal central de sindicatos de Israel, criada em 1920, e tornou-se um quadro local, possivelmente em Petah Yokva, a nordeste de Tel Aviv. Foi recrutado pelo Partido Comunista quando tinha 17 ou 18 anos, uma agremiação clandestina e antissionista, que organizava judeus e árabes. Lutava contra a colonização inglesa e a construção do Estado de Israel na Palestina, que considerava crimes contra a população local. Dizia-se convencido de que segmentos da classe operária não deveriam lutar uns contra os outros, mas deveriam unir-se, judeus e árabes, e na resistência ao nacionalismo israelense, sob crescente influência de grupos paramilitares como o Ligourn, fez-se comunista.
Foi membro do Comitê Central do PC palestino, já ingressado como agente local do Comintern (Internacional Comunista – Organização criada por Lênin que pretendia reunir partidos comunistas do mundo), colocado na prisão regularmente pelas tropas inglesas. Os comunistas eram tidos como fora-da-lei e, quando capturados, eram muitas vezes enviados a seus países de origem, o que provavelmente era uma sentença de morte. Não há registros dos períodos de detenção de meu avô na Palestina, mas sabe-se que esteve preso nos últimos dois anos de sua permanência no país, em Jafa. Em 1936, talvez por não ter origem conhecida, foi-lhe dito que escolhesse um local de destino a ser enviado, com bilhete só de ida e sem direito a retornar. Foi para a Europa Ocidental, onde estava instalada Dora, minha avó, nascida em Kromfeld, uma região que atualmente faz parte da Polônia, que ele conhecera em 1933 e expulsa do movimento kibutzim por sua aproximação com o comunismo.
Por todo o resto de suas vidas, meus avós foram antissionistas, do mesmo modo como seguiram antifascistas e anticapitalistas, ativos contra qualquer situação que lhes parecesse fundamentada em uma injustiça inaceitável. Chegaram ao comunismo por vias distintas, meu avô pela experiência proletária e sindical, minha avó, posteriormente doutora em Química, pela via da teoria e do socialismo das ideias. Ambos lutaram contra o nazismo e foram presos, escaparam, como todos os que escaparam, por algum acaso. Transmitiram, de modo variado, a política — e também a vocação para a pesquisa — a seus três filhos, um físico nuclear ligado ao Partido Comunista Francês, um neurobiólogo trotskista e um historiador e político do Partido Socialista.
Meu pai, o filho do meio, é diretor de um instituto de células-tronco para o tratamento e estudo de doenças relacionadas a mutações genéticas, chamado I-Stem. Na cena científica, sua equipe foi responsável por avanços importantes no tratamento do mal de Parkinson e do de Huntington, a partir de enxertos neuronais. Está atualmente envolvido na construção de uma usina celular na região parisiense, com o objetivo de produzir material orgânico para fins terapêuticos. É também um militante histórico e, apesar de rejeitar o título, porta-voz de Lutte Ouvrière (LO), formada em 1968 como instrumento da classe operária revolucionária, crítico à burocratização no processo revolucionário soviético. Defende publicamente o programa do partido e, sempre que pode, vai às portas de fábrica e feiras de bairro vender o jornal do partido. Participa ativamente de campanhas eleitorais, aliás apresenta-se regularmente como candidato a vereador, e de protestos convocados pela LO. Atua em atividades de formação da base militante do partido; em junho, por exemplo, falou a militantes trotskistas sobre “como a indústria farmacêutica saqueia a pesquisa pública com a ajuda do Estado”. Integrou o movimento de acadêmicos contra o sucateamento do centro de pesquisa científica francês, o CNRS, numa campanha de 2004 chamada “Sauvons la recherche” [Salvemos a pesquisa]. Enfrenta publicamente as posições do alto clérigo e políticos conservadores contra o uso de células-tronco em pesquisas e defende abertamente a clonagem terapêutica, sendo alvo frequente de campanhas difamatórias por grupos católicos fundamentalistas. Suas posições políticas radicais o transformaram em uma das grandes gueules [sem-papas-na-língua] da arena pública francesa, frequentemente convidado a manifestar-se em veículos de comunicação sobre a atualidade, e durante muitos anos o distanciaram de meu avô, que acusava de ser pouco claro sobre sua atuação na retirada da Guerra da Espanha, no fim dos anos 1930, quando os membros do PC, estalinistas, se mobilizaram contra os militantes do partido trotskista.
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Considera-se tão moldavo quanto um paulistano se diria de origem asteca. Considera-se tão judeu quanto um corinthiano se diria torcedor da equipe de peteca do Flamengo do Piauí. Nasceu em 1952, em Paris, e foi a Israel apenas uma vez, aos 12 anos. Não esconde que não pretende voltar ao país, decisão que tomou em 1967, em protesto à ocupação militar dos territórios palestinos na Guerra dos Seis Dias. No colégio, no mesmo ano, envolveu-se em uma briga com jovens do Betar, organização miliciana sionista, que lhe fizeram a saudação nazista, acusando-o de antissemita. A manifestação pró-palestina mais marcante à qual participou, conta, foi em 1982, no contexto do Massacre de Sabra e Chatila, “a demonstração mais evidente do horror israelense, o país do apartheid, que massacra como o fizeram os nazistas”. Para ele, o único modo de resolver o conflito no Oriente Médio é com a construção de uma federação democrática, com judeus e árabes, que, diz, depende de uma transformação profunda das sociedades da região.
Fui a Israel uma vez, em 2004, como jornalista. O contexto era uma ofensiva à Cisjordânia, o bloqueio de Gaza, onde não consegui chegar. Escrevi uma dúzia de reportagens para publicações de esquerda brasileiras e de fora. Entrevistei o presidente palestino Yasser Arafat, em meio a um cerco a seu quartel-general, a Muqata’a, em Ramallah. O prédio do líder do Fatah era uma meia ruína, rodeada de largos espetos de madeira, plantados em barris de concreto, para impedir a aterrissagem de helicópteros israelenses. Conversamos por mais de uma hora, com a participação de seu ministro das Comunicações, formado em Portugal. Em várias ocasiões, durante a entrevista, o presidente Arafat me pediu socorro em nome do povo palestino, pediu socorro à comunidade internacional, ao Brasil. Morreu menos de três meses após nosso encontro.
Lá, conheci palestinos e israelenses a favor de um Estado binacional, conheci campos de treinamento do Hamas. Entrevistei o técnico nuclear israelense Mordechai Vanunu, recém liberto após passar dezoito anos na prisão, onze dos quais em solitária, por revelar ao mundo o programa nuclear de Israel. A pedido de seu irmão, receoso de que o conteúdo da entrevista pudesse prejudicar Vanunu, não a publiquei. Conheci o pacifista Mikado Warschawski, criador do Centro de Informação Alternativa, uma organização de análise e denúncia da ocupação dos territórios palestinos, que, em 21 de julho de 2014, declarou estar com medo de sofrer alguma violência por protestar contra a recente ofensiva a Gaza, sentimento que jamais tivera em outras circunstâncias, num quadro em que, segundo ele, “o Estado hebraico se afunda no fascismo”. No aeroporto de Frankfurt, na Alemanha, esperando madrugada adentro a conexão para Tel Aviv, conheci Nivai, um jovem israelense retornando de um sabático oferecido a militares após o serviço obrigatório, que decidira passar na Tailândia. Nos territórios, fora atirador de elite. Tinha mais ou menos minha idade. Conheci em reportagens pelo interior da Cisjordânia o sofrimento palestino, a violência do apartheid.
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Nem meu pai nem eu sentimos uma responsabilidade especial em relação a Israel, com a qual não temos qualquer vínculo. Como muitos de esquerda, declaramo-nos pró-palestinos, do mesmo modo que nos declaramos e marchamos a favor de outros povos massacrados. Repudiamos, em uníssono in memoriam de meu avô e lado a lado com dezenas de milhares de manifestantes em todo o mundo, a mais nova onda de violência contra o povo de Gaza. Isso não nos torna antissemitas, mas antissionistas. Repudiamos, ecoando o adolescente transnitriano internacionalista, a ascensão do antissemitismo e dos partidos de extrema direita na Europa, o que não nos torna mais ou menos próximos de nosso suposto judaísmo original. E certamente meu pai ou o partido em que milita não influenciam decisivamente os rumos do governo francês, que, fosse assim, não seria tão covarde nas suas posições sobre o atual massacre em Gaza. Mas, principalmente, como a história não acaba, infelizmente para o sionismo, o fascismo e o capitalismo tout court, seguimos de esquerda e tenho filhos, também “originários da Moldávia”.
*João Alexandre Peschanski é doutorando em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e professor de Ciência Política na Faculdade Cásper Líbero. Integra o comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas.