Na semana anterior à viagem a Cuba, onde moraria pelos próximos seis meses, minha avó, nascida em 1922, me disse: mande um beijo a Fidel. E viva a revolução.
Cuba é incompreensível para a historiografia oficial, a sociologia ocidental, a antropologia moderna. Elas não dão conta do labirinto de contradições pensados e praticados na pele daquele país. Talvez a poesia dê. A ilha é um mistério, quiçá o mais intricado de todo o século 20.
Viver em Cuba no primeiro semestre de 2016 foi assistir à chegada brutal do capitalismo: a aterrissagem de Obama e seu discurso a favor da entrada livre de capital estrangeiro, da filosofia do individualismo e da liberdade de expressão; o primeiro desfile da Chanel com nenhuma modelo cubana; a abertura de lojas Adidas, Jennifer Lopez, Clarins; a invasão estrangeira de turistas ávidos pelos últimos relampejos da “experiência socialista” – a ideologia como parque de diversões.
Ismael Francisco/ Cubadebate
Cuba é um mistério, quiçá o mais intricado de todo o século 20
Acompanhar, de Cuba, todo o processo bem-sucedido de golpe contra Dilma foi reconhecer que nós perdemos. O fracasso, nu e simples.
Eu e Luis, meu namorado nascido no Equador e que hoje mora no Brasil, costumávamos andar pelas ruas de Cuba – nos sete meses que vivemos lá, viajamos de uma ponta a outra do país – fazendo uma brincadeira cruel: imaginar o quê, daqui a vinte anos, iremos dizer às crianças futuras quando formos à Cuba:
– Nessa ilha, meu amor, há duas décadas atrás se falava espanhol; houve uma época, até, que o inglês foi proibido!
Em certo momento, divergíamos: na minha visão cínica, Cuba estaria (estará?) refém do Grande Irmão, sendo mais uma peça do capitalismo financeiro contemporâneo, como Porto Rico ou Panamá, enquanto Luis acredita que a população cubana, ao entrar em contato com a fera bestial, irá preferir e conduzir a própria sociedade em direção a um remodelado Estado do bem estar social. Veremos. Espero estar errada.
Certo é que eu não posso falar sobre Cuba, Fidel ou a herança da Revolução. Carreguei – e carrego – durante todos os dias em que vivi na ilha a tirânica sina: ser estrangeira. Pertencer a outro mundo.
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Vivi no único país do mundo onde a moradia, a saúde, a educação e o transporte são gratuitos e universais. Onde não há mendigos ou crianças passando fome. Também vivi num país onde as pessoas estão insatisfeitas, carregadas de traumas e querem mais, sedentas de um Outro – que atende por muitos nomes.
Na minha primeira semana na mítica escola de cinema de San Antonio de los Baños, tivemos que defender oralmente uma ideia cinematográfica para um curta-metragem. Abbas Kiarostami, o igualmente mítico cineasta iraniano, era o comitê julgador.
O tema do exercício era Cuba, essa esfinge. Propus um filme epistolar, dirigido a minha mãe, sobre o sentimento dúbio do forasteiro numa terra estrangeira e intraduzível. Kiarostami me disse para buscar com outros olhos; Cuba, afinal, era a explosão de cores, a felicidade, o mito – não havia solidão. Discutimos – inicialmente em farsi, depois, em inglês.
Não acreditei naquela argumentação simplória e devolvi com um: o senhor está fazendo uma provocação; os seus próprios filmes não giram em torno dessa ideia de felicidade. Kiarostami disse para eu fazer o que quisesse, mas que o cinema conta histórias – a poesia fala sobre sentimentos.
Um é um, outro é outro. Terminei por escrever um poema sobre a solidão em Cuba e o filmei como uma dança de cavalos. Quando mostrei a versão final, ele simplesmente disse “I love it”. E sorriu, debaixo daqueles reiterados óculos escuros.
Hoje, Kiarostami e Fidel estão mortos. E a vida segue.
*Letícia Simões é cineasta, diretora de “Bruta Aventura em Versos” e “Tudo Vai Ficar da Cor que Você Quiser”. Em 2016, passou 7 meses em Cuba, no mestrado de Cine Ensayo da EICTV. Texto publicado originalmente no site da revista Carta Capital.