Há diálogos que marcam.
Certa vez, encontrei Milton Temer, um homem venerável, que lutou contra a ditadura, que age estritamente de acordo com as suas ideias. Apesar de sua saúde instável, teve forças para denunciar as injustiças nos casos de Dilma e Lula, e de tantas outras injustiças que vêm acontecendo. Desde antes da época da ditadura. Posso dizer que talvez ele seja assim desde que nasceu.
Naquela época, que era a época do golpe, de definições e separações entre petralhas e coxinhas, eu tinha um medo enorme de virar coxinha depois de uma certa idade. Como aconteceu com umas pessoas da minha família (minha família tem tradição de estar à esquerda), com alguns amigos e com pessoas famosas (como o FHC).
Durante o encontro, perguntei pro Milton – na minha ainda crescente consciência de mulher que acabou de se posicionar no mundo -, o que acontece com essas pessoas que viram coxinhas. Ele me respondeu que essas pessoas lutavam pela liberdade, mas confundiam com liberdade econômica. Ou outro tipo de liberdade que não era a liberdade em si. Então, muita gente ali, aliada na luta, que correu riscos, só lutava pelo dinheiro.
Isso me deixou aliviada. Porque, segundo ele, a luta é pela liberdade do povo. E eu gosto da ideia. A ideia de liberdade do indivíduo, de todo mundo fazer o que quiser, de acreditar no que quiser. Ok, ainda é uma imposição, mas a ideia de liberdade é tão boa, tão libertadora, que, se alguém não quiser ser livre, precisamos deixar a pessoa ser livre para decidir não ser livre.
Bonito, né? Mas se na teoria dá um nó, na prática é uma rede toda emaranhada. Porque há algumas práticas baseadas em teorias lindas que podem ser impositivas demais, que apesar de terem ótimas intenções, podem criar a falta de liberdade. Isso acontece nas ditaduras baseadas nessas teorias maravilhosas que a gente já leu (ou fingiu que leu) nas nossas cartilhas, cumpanhêros.
E aí a gente fica com aquela falta de confiança no que acreditamos. Quem de nós já acreditou que “não adianta, quando uma bela teoria cai nas mãos dos humanos, a prática é distorcida. O homem é corruptível, é impossível viver em um mundo ideal”.
Pois eu estou aqui para dizer para vocês que não é bem assim.
Dá para viver num mundo ideal numa boa. Agora mesmo.
É por isso que já faz uns anos, estou em lua-de-mel com um conceito que nem é bem uma teoria. Que é para não cair nessas loucuras de fórmulas de sociedade ideal.
O conceito do Bem-Viver.
A essência desse conceito reconhece que os seres humanos e todos os outros seres fazem parte da natureza. Ou seja, posiciona a natureza no papel fundamental da construção da sociabilidade humana.
Isso quer dizer que não estamos acima da natureza. Não somos donos dela. Também não somos subordinados. Não existe poder, em se tratando de natureza. Somos parte dela. Somos natureza. Fazemos parte desse mundo. Humanidade = natureza. Simples assim.
A partir daí, um mundo ideal abre-se na nossa frente. Basta pensar um pouco no assunto. Fazer como disse Baudolino, no livro do Umberto Eco:
“Quando eu não era vítima das tentações deste mundo, dedicava minhas noites a imaginar outros mundos. Um pouco com a ajuda do vinho e outro tanto do mel verde. Não há nada melhor do que imaginar outros mundos para esquecer o quanto é doloroso este em que vivemos. Pelo menos eu pensava assim naquele momento. Ainda não compreendera que imaginando outros mundos, acabamos por mudar também este nosso.”
Esse trecho é citado no livro que costumo dizer que é a minha Bíblia Sagrada: “O Bem Viver”, de Alberto Acosta.
Acosta foi ministro da economia na época do Rafael Corrêa, ex-presidente do Equador. Pediu demissão depois que viu que suas ideias não estavam sendo postas em prática por causa de questões econômicas nas quais já estamos cansados de saber que enriquecem alguns, promovem luxo e padrões de vida desnecessários, enquanto a natureza é devastada em prol desse luxo.
O Bem Viver trata-se disso: lutar pelo fim de todas as formas de exploração, ou seja, de poder. Racismo, machismo, colonialismo… Tudo isso está na pauta.
O Bem Viver aborda a liberdade, a alteridade e o respeito à natureza em todas as suas formas e em todas as esferas sociais: econômica, política, cultural, espiritual, psicológica…
Pois bem. Que projeto bonito, né? Mas não adianta correr atrás disso se a sua cabeça continua pensando alto.
Vamos devagar. Vamos aceitar o fato de que não vamos ver a revolução acontecer, mas também não merecemos sofrer. E nem morrer de ansiedade.
Então vamos devagar. Vamos partir da fala de Baudolino: imaginar mundos melhores é um ótimo exercício para fundamentar as nossas ações.
E como é esse mundo melhor que você imagina?
Eu imagino um mundo em que não precisemos pagar para comer. Isso é o mais básico, o essencial. Sem comida a gente não vive. Com comida que não parece ser comida, dessas que a gente come já sabendo que vai fazer mal, a gente vive mais ou menos. Vive meio lerdo. Fica doente fácil.
Mas, com boa comida, aquela que faz parte da nossa natureza essencial, que está com a gente aqui neste planeta, junto, somando, agregando forças, que são gostosas, deliciosas, suculentas, saborosas, a gente vive supersaudável.
E sabe como é viver de forma saudável? É ter um corpo maravilhoso, que responde ao que você quer, é ter uma mente iluminada, que vive o presente, que sabe que o mundo ideal é o mundo em que vivemos agora (ops, revelei um spoiler).
E então, quando todos nós estivermos comendo com qualidade, em comunhão com a natureza, seremos tão maravilhosos que o gozo será eterno.
Aí vamos entender que o dinheiro é secundário. Que o mais importante é viver: Comer, dormir e respirar. A gente vai começar a cuidar mais da gente e cuidar dos outros, também. Vamos almoçar uns nas casas dos outros. Vamos parar de perder tempo com horas fixas no trabalho, vamos parar de vender nossas melhores horas, aquelas em que somos artistas únicos, por dinheiro garantido no fim do mês. (Alô, Bolsonaro, obrigada pelas reformas!) Vamos parar de achar que tudo nesse sistema se resume a ganhar dinheiro.
Pois eu tenho uma notícia: esse sistema é só uma maneira de enxergar o mundo. O mundo não é um sistema. O mundo é um universo. Infinito.
Ui. Viajei. Escrevi demais. Chega, né? Isso aqui não é o Antigo Testamento e temos coisas melhores a fazer.
Sabe o que é? Amo falar sobre mundos melhores. Sobre o Bem Viver. Se meu editor topar me manter aqui, prometo para a semana que vem um texto mais pé no chão (e até mais curto) sobre o assunto.