A deputada federal Benedita da Silva questionou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a possibilidade de haver cota nos partidos políticos para candidatos negros e para o financiamento e tempo de propaganda eleitoral de suas campanhas. O questionamento parte da constatação da sub-representação dos negros e negras na política brasileira e se vale da exigência presente no Estatuto da Igualdade Racial de que o Estado garanta a igualdade de oportunidades na vida política.
O presidente do TSE, Ministro Luiz Roberto Barroso, considerou o enfrentamento do racismo estrutural como necessidade, e uma das formas para deter seu funcionamento é atuar nas normas e institutos que o mantém, reproduzindo e aprofundando a desigualdade racial. Nas eleições gerais de 2018, dos eleitos, apenas 27,9% eram negros, apesar de representarem 53% da população brasileira. Estudo da FGV aponta: entre os candidatos competitivos, os homens negros formam o único grupo que recebeu menos recursos de todos os tipos de doação de campanha (renda do partido, doação de pessoa física, recursos próprios e outros). Eles foram 21% dos candidatos a deputado federal e, proporcionalmente, receberam apenas 16% dos recursos de partido. As mulheres negras tiveram uma ligeira superioridade: eram 3,9% do total de candidatos à Câmara dos Deputados e receberam 4,2% dos recursos de partido.
A FGV também criou um índice de razão entre recursos e candidatos. Quanto mais próximo do 1, mais proporcional é a distribuição de recursos para determinado grupo. Acima de 1, há excesso de recursos. Abaixo de 1, existe o subfinanciamento. Em 2014, o índice da FGV em relação às candidatas negras marcava de 0,46 e, em 2018, subiu para 0,93. No grupo de homens negros, o número passou de 0,7 para 0,75, uma pequena variação. A inércia neste caso não é neutra e funciona como instrumento de exclusão, estruturando a sub-representação.
A manifestação favorável do presidente da Corte Eleitoral e pelo ministro Fachin foi seguida de pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes. O expediente judiciário do primeiro semestre terminou no último 30 de junho e somente no retorno, em agosto, teremos o resultado final da votação. A destinação da reserva de vagas combinada com a cota do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC) são medidas concretas para correção da sub-representarão. Não há a menor possibilidade de reverter o racismo estrutural sem ação concreta e firme para detê-lo.
Um dos mecanismos mais insidiosos e eficientes do racismo estrutural é sua naturalização. A hegemonia branca colonial instituída no passado é preservada na ideologia por ele projetada no presente, conservando sua lógica e afetos na igualdade formal. Na República, lugar de preto continua sendo o lado de fora. Não há lei dispondo expressamente, mas a disposição das coisas assim o determina, conservando o distanciamento e a interdição do acesso. O racismo estrutural impõe a reorganização dos espaços de poder onde eles preservam a exclusão.
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Não há a menor possibilidade de reverter o racismo estrutural sem ação concreta e firme para detê-lo
Os mecanismos de inclusão agem na estrutura, impactando e desarticulando a inércia favorável ao racismo. Política pública vai além da boa vontade. Política pública interfere, altera e inclui os que pela ordem natural das coisas são mantidos do lado de fora. As instituições partidárias, o movimento social negro e a sociedade civil antirracista podem e devem assumir o protagonismo desse processo, seja manifestando apoio público, elaborando campanhas informativas, pressionando nas redes sociais para a retomada do processo após o término do recesso judiciário, combinado com a disposição das instituições partidárias de já antecipar medidas concretas para viabilizar o financiamento das candidaturas negras para o Legislativo e Executivo.
O ponto primordial é garantir a paridade com equidade, abandonando a política do negro/a única nos espaços de representação. Essa pode se tornar uma política afirmativa e reparatória, criando chances reais de estabelecer um novo parâmetro de representatividade nos espaços de poder da nossa tão jovem democracia. Ao adotar cotas raciais para eleições combinadas com o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas, o TSE conferirá efetividade material à democracia, estendendo-a de fato a todos e todas. Cotas nas eleições de 2020 são necessárias. Com elas vamos além do universalismo que nos invisibiliza.
Nada sobre nós, sem nós!
Douglas Martins é doutor em Filosofia, mestre em Direito, advogado e jornalista. Ex-secretário adjunto da Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial da Presidência da República (2003/2006) e pré-candidato a prefeito de Santos.
Tiago Soares é secretário estadual de Combate ao Racismo do PT-SP e historiador com pós-graduação em gestão e politicas públicas.