Criamos o nosso mito. O mito é uma fé, é uma paixão. Não é preciso que seja uma realidade. (…) O nosso mito é a nação, o nosso mito é a grandeza da nação!
(MUSSOLINI. apud KONDER, 2009, p. 35 e 36)
O nacionalismo que exprime os sentimentos de um povo explorado pelo capital estrangeiro (…) é um nacionalismo essencialmente defensivo (…) ele não se afirma em contraposição à humanidade em geral e não nega os valores de outras nações. A valorização fascista da nação, ao contrário, exatamente porque é inevitavelmente retórica, precisa ser agressiva, precisa recorrer a uma ênfase feroz para disfarçar o seu vazio.
(KONDER, 2009, p. 40 e 41)
O chauvinismo – o nacionalismo exacerbado – é um componente essencial do fascismo. Não há fascismo sem esse tipo de nacionalismo. Para se legitimar o fascismo precisa de inimigos externos, reais ou imaginários, que justificam sua existência.
O bolsonarismo possui uma contradição profunda nesse campo: como aliar o nacionalismo com a subordinação aos Estados Unidos?
O nacionalismo do fascismo precisa de inimigos externos porque não consegue legitimação nele próprio, porque é um nacionalismo vazio. Mais ainda o nacionalismo bolsonarista que prega uma subordinação completa aos EUA.
Essa contradição aparentemente impossível de resolver foi resolvida de forma genial pelo bolsonarismo. E para isso o bolsonarismo precisou recorrer a um mito. Esse mito não foi criado por ele, mas foi por ele potencializado e muito bem utilizado. O mito de que nos governos petistas os interesses do Brasil estiveram subordinados à China, Rússia, Venezuela, Cuba etc. Esse mito foi criado pela imprensa e pelos partidos da direita liberal e reproduzido até por setores de esquerda.
O bolsonarismo se utilizou disso para criar a ideia de que os verdadeiros inimigos do Brasil eram os BRICS, a Unasul, Mercosul etc. E principalmente a China. A integração latino-americana passou a ser interpretada como uma ameaça à nação brasileira e até nossas relações com os países africanos passaram a ser vistas como ameaçadoras à nossa soberania. Qualquer um com boa memória vai lembrar que essa narrativa já estava presente na mídia e na direita liberal muito antes da ascensão do bolsonarismo.
Esse mito foi sendo criado à medida em que os governos petistas realizavam a integração soberana do Brasil na ordem econômica e geopolítica mundial. A busca desses governos para que o Brasil não fosse mais refém dos EUA, para tanto, apostando na integração latino-americana e com a África e também no estabelecimento de novas parcerias comerciais e geopolíticas com China, Rússia, Irã etc. Tal processo também se evidenciou com a construção de organismos que aumentavam o protagonismo do Brasil no mundo, como os BRICS e a Unasul.
Essa inserção soberana do Brasil no cenário internacional, realizada pelos governos petistas, permitiu ao Brasil crescer economicamente tornando-se a sexta economia do mundo em 2011, ultrapassando o Reino Unido. Assim como também fez o país alcançar um protagonismo internacional jamais visto, simbolizado entre outras coisas pela liderança do Brasil na criação do G20.
Mas tudo isso sempre foi interpretado de forma negativa pela mídia brasileira e pelos partidos de direita. Ou seja, todo esse processo de integração do Sul do mundo e de independência da política externa brasileira sempre foi narrado e resumido como o apoio do PT a “ditaduras” e outras narrativas mentirosas semelhantes.
Tudo isso encontra um auge no momento em que as indústrias de construção e do petróleo brasileiras começam a se expandir pelo mundo. Especialmente pela África e pelo restante da América Latina, o que obviamente ameaçava e contrariava os interesses dos EUA. Lembre-se que a Petrobras chegou inclusive a ser dona de refinaria no território norte-americano.
Marcos Corrêa/PR
Bolsonarismo possui uma contradição profunda nesse campo: como aliar o nacionalismo com a subordinação aos Estados Unidos?
A Lava Jato foi a resposta pesada dos Estados Unidos contra tudo isso. A Lava Jato atingiu em cheio a Petrobras, limitando sua expansão e mesmo causando graves prejuízos, como no caso de Pasadena, e o enfraquecimento econômico da estatal. Atingiu também as empresas de construção brasileiras, combatendo ferozmente a presença das mesmas em outros países e o incentivo do governo brasileiro para que isso acontecesse.
Para fazer isso a Lava Jato criou uma narrativa de que todo esse processo de expansão de empresas brasileiras era negativo ao país, amparando esta ideia no debate sobre corrupção. A Lava Jato não se limitou a combater casos concretos de corrupção que tenham ocorrido nesse processo. Como já foi amplamente divulgado e debatido, ela assumiu a tarefa principal de acabar ou reduzir drasticamente com a presença dessas empresas brasileiras no estrangeiro, atendendo assim aos interesses estratégicos norte-americanos contra os interesses nacionais.
A narrativa da Lava Jato se associa à anterior, na qual a inserção soberana do Brasil no mundo é vista como algo contrário ao interesse nacional e a complementa advogando contra a política externa brasileira e a política de incentivo do BNDES à expansão das empresas brasileiras pelo mundo. E os Estados Unidos, oficialmente grandes parceiros da Lava Jato, são apresentados como amigos e aliados dos nossos interesses nacionais. Nesse aspecto, como em vários outros, a Lava Jato também ajudou a parir o bolsonarismo.
Retornando à narrativa bolsonarista, ela nos diz que o mundo inteiro, guiado pela China, quer dominar o Brasil. E os Estados Unidos são apresentados por ela como nossos salvadores, nossa única proteção contra a tal “ordem mundial comunista”. Portanto, é bastante lógico – na lógica bolsonarista – que o Brasil esteja completamente alinhado, de forma subordinada, aos Estados Unidos. Já que são eles os únicos que gostariam e que poderiam efetivamente nos salvar da Venezuela, de Cuba, da Rússia e, principalmente, da China.
É dessa forma, ao mesmo tempo genial e fantasiosa, que o bolsonarismo concilia o que parecia inconciliável: a retórica nacionalista com a total subordinação aos Estados Unidos e seus interesses. O discurso patriota vazio de Bolsonaro com a postura de capacho diante de Trump.
Percebendo isso é possível entender melhor a atual política externa do Brasil. Aquilo que parece uma grande estupidez – ou um amontoado delas – é na verdade um projeto político muito bem fundamentado e estruturado. Os discursos do ministro Ernesto Araújo contra a China e contra a tal “ordem mundial comunista” não são delírios de uma mente perturbada. Mas são parte fundamental da ideologia bolsonarista e de sua justificação, pelo menos, no aspecto do nacionalismo subordinado ao imperialismo ianque.
Assim, para se justificar o nacionalismo bolsonarista, por ser completamente vazio e retórico, precisa de inimigos externos imaginários. Precisa constantemente atacar a China, nossos vizinhos latino-americanos, os organismos internacionais, especialmente agora a OMS. Todos eles são combatidos sob o pretexto de defesa do Brasil. Ao mesmo tempo, em que os Estados Unidos são louvados como nossos grandes aliados e salvadores.
Não se trata de negacionismo ou irracionalismo. Trata-se do fascismo e de como ele se constituiu no Brasil e segue se fortalecendo a partir de um suposto nacionalismo. Trata-se de um dos pilares de sustentação do bolsonarismo. E compreendê-lo adequadamente é fundamental para a destruição desse pilar e a superação como um todo do neofascismo. Inclusive destruindo o mito original fundador desse pseudonacionalismo criado pela direita liberal e fortalecido pela Lava Jato.
(*) Anderson Barbosa é historiador e presidente do Partido dos Trabalhadores de Pesqueira/PE