Opera Mundi publica aqui artigo da professora livre docente do Departamento de Filosofia da Unicamp Yara Frateschi que responde ao texto do historiador Jones Manoel intitulado Dualismo ético-moral e miséria teórica. O texto de Jones Manoel, por sua vez, respondia a outro artigo de Frateschi intitulado O Caso Stálin e o espantalho Arendt no Brasil de Bolsonaro, que debatia com o artigo escrito por Manoel e por Breno Altman, fundador de Opera Mundi, Caso Stálin: o papel da vilania na história.
Leia abaixo o texto de Yara Frateschi:
O caso Stálin e o espantalho de Arendt: parte II
Quando resolvi escrever uma resposta ao artigo de Breno Altman e Jones Manoel, intitulado “Caso Stálin: o papel da vilania na história”, imaginei que a réplica viria a quatro mãos. Por razão que me escapa, Altman desembarcou da polêmica e Jones Manoel me endereçou “Dualismo ético-moral e miséria teórica”. Uma vez que, do ponto de vista do argumento, este texto de Manoel não dá um passo sequer além do primeiro que escreveu com Altman, o título da minha contrarréplica continua o mesmo.
Antes de qualquer coisa, há que se admitir que Jones Manoel acerta no principal a respeito do meu primeiro artigo, intitulado “O Caso Stálin e o espantalho Arendt no Brasil de Bolsonaro”: eu efetivamente fiz uma analogia entre o argumento dele e de Breno Altman a respeito dos crimes de Stálin e o argumento de nazistas de ontem e hoje a respeito dos crimes de Hitler. O que não significa, evidentemente, chama-los de “neonazistas”.
Os discursos estão aí – nos livros, nas redes sociais, nos comícios – para quem quiser compará-los: infelizmente não se trata de uma fantasia minha a semelhança das justificativas. Eu só fiz explicitá-las.
Manoel também acerta em sublinhar que eu identifico baixa densidade democrática na argumentação que ele e Altman sustentam sobre o caso Stálin, que serviria, reitero, para justificar os crimes dos governos de extrema direita, os de ontem e os de hoje.
O que Manoel não faz é responder à minha objeção. Ele sequer faz um esforço para explicar porque eu estaria errada ao explicitar semelhanças estruturais nos discursos justificatórios de stalinistas e hitleristas. Talvez se esquive da minha objeção principal por não ter mesmo como formular um contra-argumento convincente.
Quando muito ele diz que está defendendo uma “visão materialista da crítica do Stalinismo”. Seria bem mais interessante se ele explicasse o que propriamente isso significa e porque não servira para justificar os crimes de outros ditadores, os de direita inclusive. Mas, como nem mesmo isso ele faz, só lhe resta criar outro espantalho, procedimento que já havia sido adotado no primeiro texto escrito por ele e Breno Altman.
O espantalho é uma simulação que serve para enganar as aves e afugentá-las da plantação. É um boneco feito com roupas velhas recheadas com trapos. A estratégia de Manoel é justamente desviar a atenção das suas leitoras e dos seus leitores para que não prestem atenção no buraco da sua própria argumentação. Para tanto, a até então “liberal moralista” Hannah Arendt, se torna racista, colonialista e imperialista, bem ao gosto do decolonianismo ideológico, que só faz atrapalhar a crítica decolonial séria e necessária em território nacional (que já está sendo feita, ainda bem).
Há um longo debate em torno do suposto racismo de Arendt, e isso mostra que o tema merece toda a atenção e reflexão. Das manifestações de Arendt, nenhuma é tão infeliz quanto aquela sobre a atuação do Black Power nas universidades destacada por Jones Manoel; das suas avaliações políticas, nenhuma foi tão equivocada, na minha opinião, quanto a que fez do caso Little Rock. Aliás, Arendt erra em outros aspectos, como na separação rígida entre o social e o político, por exemplo, que torna a sua filosofia precária para o enfrentamento de certos fenômenos políticos e sociais.
Contudo, vale lembrar que Arendt reconheceu o erro do próprio posicionamento sobre Little Rock e se desculpou. E antes de jogá-la na fogueira ou lacrar um rótulo seria interessante questionar se, ao invés de racista, ela não teria sustentado, isso sim, uma posição altamente equivocada e um tanto ingênua por condenar a ação da Suprema Corte e apostar em procedimentos dialógicos e de convencimento para o processo de dessegregação escolar. Antes ainda de acusar Arendt de diminuir a importância do movimento pelos direitos civis e do crime da escravidão vale lembrar o que Jones Manoel omite: que ela foi grande entusiasta daquele movimento e mais ainda da desobediência civil, pois:
“[…] não foram as leis, mas a desobediência civil que trouxe à luz o ‘dilema americano’, que, talvez pela primeira vez, tenha obrigado a nação a reconhecer a enormidade do crime, não somente da escravidão, mas também dos benefícios dela esperados […]” (Desobediência civil, p. 74, meu destaque. Editora Perspectiva, 1972).
Antes ainda de sugerir que Arendt fosse uma apologeta racista da Revolução Americana, seria o caso de notar que em Sobre a Revolução ela atribui à escravidão a responsabilidade pela “miséria sórdida e degradante” que desmentia a retórica de Thomas Jefferson sobre a “encantadora igualdade” (Sobre Revolução, p. 107. Companhia das Letras, 2011), bem como responsabiliza a elite política norte-americana pelo fracasso e não pelo sucesso da revolução.
Ao invés de insinuar que Arendt fosse racista por criticar Franz Fanon – como se o fato de alguém criticar Fanon fosse suficiente para ser enquadrado como “racista” – seria mais instrutivo ler com atenção Sobre a Violência para perceber que o grande alvo de Arendt naquele ensaio não é Fanon, mas Sartre, o porta-voz de uma nova esquerda europeia que estava perdendo a chance de se destacar da extrema direita colonialista ao defender, com cada vez mais convicção, que “o poder brota do cano de uma arma”. Quem passar do primeiro capítulo de Os Condenados da Terra, pensava ela, verá que Fanon era “muito mais dúbio com relação à violência do que os seus admiradores [europeus]”, (Sobre a Violência, nota 20, p. 30. Editora Civilização Brasileira, 2009).
Seria ainda importante considerar que Arendt é autora de um dos primeiros estudos de grande porte a respeito da história das ideologias racistas ocidentais e da maneira como se tornaram arma política em mãos imperialistas e nazistas. Valeria um estudo atento de Origens do totalitarismo para acompanhar a explicação de como a combinação entre racismo e burocracia permitiu os massacres administrativos da dominação imperialista na África do Sul, da qual Arendt extrai a potente tese do efeito bumerangue: as possessões coloniais africanas “tornaram-se o solo mais fértil para que florescesse o grupo que viria a ser mais tarde a elite nazista” (Origens do totalitarismo, p. 237. Companhia das Letras, 2004).
De acordo com ela, o que a elite nazista aprendeu com a experiência colonial é que era possível transformar povos em raças e, assim, elevar o seu próprio povo à posição de raça dominante.
Colonialista estranha essa Hannah Arendt.
Antes de acusar Arendt de “flertar com o colonianismo”, talvez fosse melhor considerar que uma das suas teses principais, desde Origens, é a de que o horror do extermínio dos povos nativos que acompanhou a colonização das Américas, da Austrália e da África, assim como a escravidão antiga e moderna, se baseiam no princípio de que “tudo é permitido” em nome do aumento de poder: e é justamente isso que a leva a atacar sistematicamente todo governo que justifica os seus crimes pela necessidade de manter ou aumentar o poder. O de Stálin inclusive.
Nada disso apaga que Arendt não tenha tido, em momentos cruciais, sensibilidade para compreender as especificidades do racismo contra as pessoas negras em relação, por exemplo, ao antissemitismo. Nesse aspecto estou plenamente de acordo com Kathryn T. Gines, em Hannah Arendt and the negro question (Indiana University Press, 2014), que é capaz de fazer a crítica sem precisar jogar tudo fora: Gines sabe que podemos pensar com e contra Arendt. E muito embora a sagacidade para compreender o racismo continue a não ser o forte de diversas perspectivas teóricas marxistas – basta ver hoje a identificação que parte da esquerda faz da luta antirracista com luta “identitária” – , é evidente que este não é argumento válido para desculpá-la, afinal, enquanto crítica muito sagaz do reducionismo de classe, ela tinha a faca e o queijo na mão para dar um passo além na sua abordagem da “questão negra”, como foi capaz de dar com relação à “questão judaica”.
Se Jones Manoel não estivesse tão apressado para escrever uma resposta e postar nas redes sociais, talvez registrasse em sua mente a passagem do meu primeiro artigo na qual eu escrevo que nem “mesmo todos os problemas que venhamos a detectar em Origens e na própria filosofia política arendtiana— que não está além do bem e do mal” serão capazes de apagar o fato histórico de que o campo e a produção em massa de cadáveres foram experiências comuns ao nazismo e ao stalinismo. Além de não ter dialogado com a objeção levantada na segunda parte da sentença – a de que stalinismo e nazismo têm aspectos comuns – apagou a primeira, na qual eu digo sem hesitar que a filosofia de Arendt tem problemas.
Como dizia Arendt a respeito de Marx, grandes filósofos não estão imunes a grandes contradições. Muito mais interessante do que usar os clássicos para fundar seitas é buscar entender até que ponto foram capazes de decifrar os dilemas e as injustiças da sua época. Arendt errou e acertou, como todos os grandes teóricos políticos que vieram e virão. Dos seus acertos, um dos mais notáveis foi ter provado que déficit democrático não é privilégio da direita.
Acontece que filósofos teorizam enquanto governantes têm poder sobre a vida e a morte. Na melhor das hipóteses, é falacioso fazer de Arendt um espantalho – a racista, colonialista, imperialista, liberal moralista – para desviar a atenção do fato histórico inelutável dos crimes contra a humanidade cometidos por Stálin.
Jones Manoel mexe e remexe com as palavras, mas continua sem nos explicar qual é a diferença efetiva entre a sua disposição para relativizar os crimes de Stálin e a disposição dos nossos compatriotas da extrema direita, que relativizam os crimes de Hitler, de Costa e Silva e do Coronel Ustra.
Manoel teima em dizer que a minha censura é moral. Nada contra a afirmação. Não há democracia que se sustente sem uma base mínima de normas de natureza tanto moral quanto jurídica, que atendem, aliás, pelo nome de “direitos humanos”.
Hannah Arendt Center
Colonialista estranha essa Hannah Arendt
*Yara Frateschi é Professora Livre Docente do Departamento de Filosofia da Unicamp