A insistente publicidade fez com que eu procurasse assistir ao conjunto de sete episódios que fizeram de O Gambito da Rainha, recente produção da Netflix, um grande sucesso de crítica e de público. Fico sempre curiosa para entender o que leva uma produção audiovisual ao patamar de sucesso e quais os critérios que separam pragmaticamente a tal análise da crítica da análise dos espectadores médios. Em que momento da teoria crítica houve a separação entre a opinião do público leigo, por assim dizer, e do público especializado? E por que a indústria cultural passou a se valer desses dois índices para alavancar a promoção de seus conteúdos? Talvez O Gambito da Rainha nos dê boas pistas, já que neste caso específico a série parece agradar gregos e troianos.
A saga da jovem Elizabeth Harmon, personagem do best-seller de Walter Tevis, publicado na década de 80, é contada a partir de situações trágicas entrecortadas que procuram explicar a origem das dificuldades psicológicas da jovem. O apelo emocional se manifesta desde o primeiro minuto da série como força-motriz, de modo que torna-se muito difícil conseguirmos visualizar como espectadores outros ângulos para as crises detonadas pelas ações das personagens. As relações que Harmon cria com as pessoas que oferecem ajuda soam truncadas, preenchidas de mágoa e ingratidão, exatamente pelos traumas psicológicos indicados em flashbacks e no presente linear da história.
A empatia que sentimos por Harmon, ao contrário do que a dramaticidade narrativa sugere, não pode ser considerada natural, longe de ser: a empatia é criada de modo artificial em nós a partir do momento em que a trama se apresenta balizada por um viés psicologizado, no qual o comportamento social da enxadrista a todo instante se justifica pelas mazelas de vida, morte e abandono. Esse, inclusive, parece ser o foco principal de O Gambito da Rainha, a despeito de sua intenção voltada à divulgação da cultura do xadrez na história norte-americana e global. Quero dizer, a série poderia ter qualquer outro jogo como disparador temático, afinal, reis, damas, aberturas, cavalos, vitórias e tabuleiros são apenas uma pista falsa para que novamente apareça no jogo do consumo o bom e velho mito sentimental das superações humanas.
No final das contas, o sucesso da Netflix novamente mira na apresentação de uma trajetória pessoal meritocrática, perigosamente glamourizada não apenas no que diz respeito ao vício de álcool e drogas lícitas da personagem, mas ao seu jeito de lidar com todas as pessoas e situações difíceis que aparecem. Quando desprovidos dos sentimentos empáticos artificialmente criados através do discurso queixoso da protagonista, podemos observar como Elizabeth Harmon, a rigor, não passa de mais uma pobre garota branca que enriquece porque possui grande habilidade em um jogo elitista (o tempo todo reiterada como um dom, um talento nato) e que não consegue criar relações respeitosas nem mesmo com a mãe adotiva, personagem que garante subsídios materiais para que Harmon possa sonhar um futuro como enxadrista.
Harmon é o tempo todo fria, inconsequente, mal humorada, cínica, e a reação de seus convivas faz esse jeito de ser, fixo, imutável, sem nuances, parecer normal, aceitável e digno de compreensão. Alguns momentos fatais nos mostram essa lógica mal ajambrada e superficial do roteiro, por exemplo, quando repetidas vezes seus colegas de profissão mostram-se amigáveis e intimamente movidos a ajudá-la a ser uma mestra do xadrez, apesar de serem maltratados, ignorados, constrangidos toda vez que tentam aproximar-se afetivamente.
Divulgação
O Gambito da Rainha, recente produção da Netflix e um grande sucesso de crítica e de público
Esse tom de benevolência parece fazer mal inclusive ao debate de gênero que vende a série: na década de 60, em uma ficção que se propõe realista, quão verossímil pode ser uma meia dúzia de homens brancos, humilhados amorosa e profissionalmente por uma mulher, serem tão dóceis e complacentes? Harmon parece estar acima de todas as problemáticas morais e políticas de gênero por ser um gênio do xadrez – eis aqui mais um categórico nó em O Gambito da Rainha: a defesa da genialidade como uma expressão fantástica e supra-humana, capaz de isentar o indivíduo de seus gestos e reações mais grosseiros no mundo.
Se a questão dos rapazes loucos pela enxadrista parece exagerada, a aparição da personagem Jolene nos primeiros e último capítulos, revela a grande falha histórica e estética de O Gambito da Rainha.
Negra, igualmente abandonada pelos pais, trabalhadora, Jolene não nos mostra de onde vem, suas ações nos dizem apenas que sente-se responsável pela amiga Harmon, a ponto de fazer de tudo para salvá-la dos vícios e ajudá-la a retornar à glória dos grandes torneios de xadrez.
Embora tenha uma presença aparentemente combativa, de consciência racial expressa sobretudo pelos cabelos que migram de tranças infantis apertadas para a expansão de um belo black power, e manifestar alguma autonomia econômica, Jolene é a peça central de uma história não contada.
Num primeiro momento, parece uma tentativa de atualização dignificante da figura do negro nas tramas audiovisuais, entretanto, se nos deslocarmos uma vez mais da síntese emocional guiada por Harmon, tentando assim fazer um passeio de cima, sobrevoo, pela relação das duas personagens, poderemos enxergar o perverso e antigo estereótipo da mãe negra, mommy, ama de leite, condescendente, grata e compreensiva, adaptada à estética pop do fim dos anos 60 – década na qual, segundo o roteiro de O Gambito da Rainha, não aconteceu nada, absolutamente nada, de politicamente importante nos Estados Unidos a não ser uma série de torneios de xadrez.
Personagens como Harmon não trazem nenhuma novidade à história da cinematografia ocidental, meninas jovens, brancas, magras, um pouco perdidas, com dificuldades afetivas, dignas de segundas e terceiras chances, foram protagonistas de grandes filmes e de filmes menores (Encontros e Desencontros, Vick Cristina Barcelona, Olmo e a Gaivota, dentre outros). A crise subjetiva da mulher branca de classe média foi politicamente estabilizada no decorrer do último século como núcleo principal do debate de gênero no cinema e agora nas séries fast-food, consolidando-se diapasão estético e tese geral de gênero – excludente, racista, porque impera na homogeneidade dos afetos e ações que tramitam entre o social, o materialismo histórico, e as intimidades psíquicas.
Devo arriscar, nesse ponto, que a questão mencionada no início desse artigo sobre o sucesso de crítica e o sucesso de público se determina a partir da maneira como séries como O Gambito da Rainha são divulgadas. Antes de serem vistas, essas séries já são festejadas através do aparato propagandístico, ainda que não tenham tanta substância para corresponder às expectativas criadas pelos trailers, teasers e materiais gráficos.
São projetos dados à harmonização e romantização da ficção narrativa, incapazes de tencionar os temas políticos propostos em sua base. Integram uma economia vazia de empoderamentos e de estéticas do anti (anti-machista, anti-racista, anti-elitista, etc, etc.) que ganham o espectador – e a tal da crítica – pelo estômago dos valores morais que agora estão em voga no mercado, mas não necessariamente conseguem ultrapassar a mera formalidade, gerando experiências mistificadoras, enganosas, incapazes de aprofundar os debates e ações contínuos, responsáveis anteriormente pela presença da agenda negra e feminista nos espaços da indústria cultural.