A literatura latino-americana tem alguns de seus títulos mais lembrados dedicados às desventuras de oficiais militares, sempre muito presentes nas vidas de seus conterrâneos.
Do labirinto do general ao coronel a quem ninguém escrevia, as narrativas ficcionais sempre se serviram desses personagens, de quem não se pode dizer que qualquer semelhança com a vida real fosse mera coincidência, para escrever a história, em geral infeliz, desses países porfirianamente perto dos EUA e longe de Deus.
Reminiscências inescapáveis quando se publica Villas Bôas: Conversa com o Comandante, livro recém editado pela Fundação Getúlio Vargas, na sua já longa contribuição à história oral do Brasil.
Quem é próximo das questões da história oral reconhece suas limitações metodológicas, a prevalência da visão subjetiva e o caráter construído das próprias memórias, entre eles.
Neste caso, a essas características se agrega a circunstância, sempre lamentável do ponto de vista pessoal, de que ele sofre de ELA, doença que afeta o sistema nervoso e prejudica tanto os movimentos físicos quanto as funções cerebrais.
Neste caso, o responsável pelas 13 horas de entrevistas lembra que, embora com incômodo físico e dificuldade para respirar, o ex-comandante chefe das Forças Armadas estava lúcido.
Por isso, surpreende a candura com que afirma as boas intenções e informa, espontaneamente, que conversou com o vice-presidente Temer sobre o futuro impeachment de Dilma Rousseff ou que indicou o Gal. Etchegoyen para o Gabinete de Segurança Institucional de Temer presidente.
Também lhe parece absolutamente natural que o Chefe das Forças Armadas convoque os candidatos a presidente da República para “conversar sobre os programas de governo”.
Mas a cereja do bolo é a informação de que o famoso tuite de abril de 2018, em que exige do STF a negação do habeas corpus de Lula, não foi uma decisão pessoal, mas um texto discutido com todo o alto comando militar do país.
Cabe agora aos defensores da tese de que estamos em um regime democrático no qual as instituições funcionam normalmente, explicar se terá sido algum efeito colateral da doença do general o que o levou a corroborar as “teorias conspiratórias” de esquerdistas inconformados.
Para os que gostam da ideia de que a história se diverte com ironias, não passará em branco a coincidência entre a divulgação das memórias do general e a decisão do STF de negar o mal chamado” direito ao esquecimento”.
De um lado não se poderá alegar que a intervenção militar no passado recente do país é fruto de algum autor tardiamente envolvido no realismo fantástico. De outro, o ex-ministro Moro não tem mais suporte legal para esquecer as horas e horas de conversas gravadas.