A atenção da semana, e não só da mídia corporativa, se deslocou das dificuldades do bolsonarismo em lidar com a incômoda CPI da covid para a facilidade com que o mesmo bolsonarismo executa e justifica os massacres contra pretos e pobres.
É verdade que o trágico episódio do Jacarezinho não pode ser exclusivamente atribuído a Bolsonaro. Entre outras e muitas razões por que está longe de ser o primeiro e nada permite crer que será o último.
Carandiru, Candelária, Carajás e outros tantos episódios apresentam maior ou menor número de vítimas e oscilam, na cobertura, entre as qualificações de chacinas e massacres. Mas apresentam a constante de serem execuções mal disfarçadas -ou justificadas – como “embate”, ainda que absurdamente assimétrico, entre o que só os mais escandalosos cinismo e conivência podem chamar de “forças da ordem” e “suspeitos”.
Esta é a forma como são qualificados os grupos de pretos, pardos e pobres, no exercício dos distintos papeis que lhe cabem na nossa (des)ordem social: presos, moradores de rua, assentados ou trabalhadores pobres obrigados a viver em territórios disputados pelo tráfico e pelas milícias.
Se outros massacres não podiam ser atribuídos diretamente a Bolsonaro, este pode. Afinal se dá na primeira semana da posse definitiva do novo governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, bolsonarista do PSC, que substitui Wilson Witzel, também bolsonarista do PSC, que cometeu o pecado mortal de confessar ambições presidenciais.
Como este massacre foi cometido formalmente pela força policial, sem entrar no mérito do seu grau de imbricação com as milícias, não há como pensar que isso pudesse se dar à revelia do novel governador. Tudo se passou como se ele quisesse deixar claro que Witzel se foi, mas a política de atirar na cabecinha continua valendo.
Roberto Parizotti
Manifestação de solidariedade às vítimas de Jacarezinho neste sábado (08/05) na Paulista
Também não há como tergiversar sobre o fato de que a visita de Bolsonaro a Castro ocorreu menos de 24 horas antes do massacre e que o presidente e seus seguidores estão convencidos que as manifestações de apoio no domingo passado, pífias ou não, foram, sim, a “autorização” que o genocida pediu para levar adiante a sua política de terra e população arrasadas.
A direita envergonhada (que alguns tentam acreditar que possa ser uma direita civilizada) pode continuar brincando de buscar o “Biden brasileiro”, e a esquerda carente pode continuar discutindo se Biden é ou não uma reforma no capitalismo imperial.
Mas esta não tem o direito de esquecer que não foi Biden quem derrotou Trump, mas o peso da má condução da pandemia e, sobretudo, as manifestações de rua que partiram da reação à morte de George Floyd mas assumiram o caráter de contestação ao sistema policial a serviço da exploração e do racismo.
Seja pelo compromisso com o isolamento social num momento em que se anuncia de uma terceira onda pandêmica ainda mais devastadora, seja por uma aposta num jogo exclusivamente eleitoral, corremos o risco de ignorar que o bolsonarismo pretende levar a sério a “autorização” que acredita que obteve.
*Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos