Na semana passada defendi aqui a ideia de que um duplo movimento de inclusão e extroversão da USP é a melhor estratégia para preservar, a curto e médio prazos, a dotação orçamentário e a autonomia desta e das demais universidades estaduais paulistas.
É claro que se pode, e deve, torcer por um governo paulista ciente do papel fundamental do seu sistema de ensino, pesquisa e inovação, de longe o mais forte do país. Mas os dissabores e a angústia vividos hoje por todo o sistema federal de ensino e pesquisa mostra o quão precário e arriscado é contar apenas com o apoio vindo de cima.
Quanto ao primeiro lado da pinça, somente de desinformados ou dos mais empedernidos meritocratas ainda podemos ouvir que o ingresso de alunos da escola pública e as correspondentes cotas de pretos, pardos e indígenas, implique perda de qualidade no ensino. Todos os estudos sistemáticos, na USP ou nas muitas universidades federais que adotaram o sistema de cotas antes de nós, apontam exatamente o contrário.
Da mesma forma é preciso superar os preconceitos (não os da elite intelectual, mas os da demofobia) para compreender o quanto a atuação das universidades na exteriorização dos seus conhecimentos e competências pode ser benéfica e produtiva, não apenas para a comunidade que as mantém, mas também para elas próprias.
Implantado há apenas quatro anos, o programa “USP – Municípios” já atua em 50 cidades do estado de São Paulo. Pouco, diante dos 645 municípios do Estado, mas indicador de enorme potencialidade. E se lembrarmos que apenas 40 destes têm mais de 200 mil habitantes é fácil imaginar que sua capacidade técnica própria para as atividades de planejamento, definição de políticas públicas nas áreas fundamentais de educação, saúde, mobilidade, meio ambiente, etc. é precária, quando não inexistente.
Esse quadro vem sendo agravado pelo governo paulista com o enfraquecimento de todo o sistema público de apoio técnico às administrações municipais.
Wikicommons
Nenhuma universidade consegue alcançar posições de excelência sem uma profunda interconexão com os interesses de suas comunidades locais
Fundação do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP) e Fundação Faria Lima foram extintos já em 2015. A asfixia financeira e de pessoal tem sido uma constante e a recente decisão de extinção da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) e de vários outros institutos de pesquisa e apoio, consolidam a dependência dos municípios de instituições privadas para dar conta até de suas obrigações legais mínimas.
Agora imaginemos que a USP pudesse propor às demais instituições a estruturação de um programa conjunto e articulado “Universidades – Municípios”. Só a rede estadual, USP, Unicamp e UNESP, mais a Fundação Paula Souza (FATECs e ETECs), atua em quase 200 municípios, em todas as regiões do Estado. É isso que está previsto explicitamente no Programa da Chapa “SomosTodosUSP” para a Reitoria da USP na gestão 2022-25 e é uma das fortes razões para que ela tenha meu apoio.
E se pensarmos, numa perspectiva mais ampla, o envolvimento das três universidades federais e dos 37 campi do Instituto Federal de São Paulo, teremos uma rede de apoio técnico à inovação em políticas públicas, altamente qualificada e com uma capilaridade territorial superior à de qualquer país latino-americano e de muitos europeus.
Nessa minha defesa tenho sido perguntado, sobre o lugar da excelência, sobre a autonomia da pesquisa ou ainda sobre a ciência pura. Isso certamente merece um esclarecimento mais cuidadoso.
Mas desde já aponto que nenhuma universidade de classe mundial (das anglo-saxãs às chinesas, que vem aceleradamente despontando nos rankings internacionais) chegou a essa condição sem uma profunda interconexão com os interesses de suas comunidades locais e nacionais.
Podemos enfrentar isso de cabeça levantada ou continuar insistindo em conversar com nosso umbigos, sob a proteção de uma torre de marfim que há muito deixou de existir.
*Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos, filho da escola pública, mas também, e com muito orgulho, filho de camponeses que tudo fizeram para que pudesse ser o primeiro da família a chegar à universidade