O passamento de Olavo de Carvalho, vítima do negacionismo que tanto alimentou em tempos de covid-19, está se prestando a muitos desabafos, piadas e lágrimas de crocodilo. Olavo era ao mesmo tempo a figura folclórica que se atribuiu o título de filósofo e a inteligência rara que descobriu muito cedo que lado das ideias era pouco exigente com a higidez dos argumentos. Ou seja, descobriu que posições deveria defender para que fosse aceito como “pensador”, ainda que tivesse fracassado no degrau abaixo de guru.
A trajetória de Olavo de Carvalho ensina muito sobre os métodos de construção da atual intelectualidade direitista. Comecemos por 1979, quando foi um dos fundadores da Escola Júpiter. Olavo ministrava cursos de astrologia, entre outras generalidades. Ainda em 1979, como astrólogo, colaborou num curso de extensão universitária da PUC-SP, ensinado astrologia a formandos em psicologia.
Dos anos 1980, é possível encontrar vídeos de Olavo de Carvalho falando absurdos na TV, mas já tratado como se fosse um acadêmico respeitável, quando não passava de um polemista à procura de um assunto que lhe desse farol.
Nos anos 1990, Olavo ciscava para lá e para cá, procurando alcançar algum destaque como intelectual. Em busca de vozes dissonantes do consenso razoavelmente progressista concretizado na Constituição de 1988, os grandes jornais sabiam que podiam recorrer a ele quando buscavam polêmicas fáceis. Um dos alvos prediletos de Olavo era a academia, onde nunca foi aceito, o que, antes de demonstrar os defeitos da universidade brasileira, era um sinal de virtude.
Na Folha de S. Paulo, sobretudo no início da segunda metade da década de 1990, era comum encontrar o nome de Olavo assinando artigos na página de opinião do jornal. Eventualmente, esses artigos apareciam também no jornal O Globo. Conta o anedotário da Folha que, certa vez, o dono do jornal sugeriu que ele se tornasse colunista fixo, e recebeu do editor que consultou um comentário breve, mas que o demoveu da ideia: “Acho brega”.
É também na segunda metade dos anos 1990 que surge a revista República, que depois virou Primeira Leitura. O projeto foi patrocinado por Luís Felipe Dávila, hoje pré-candidato do Partido Novo à Presidência da República. Um dos principais jornalistas dos dois projetos foi Reinaldo Azevedo. Em República era presença comum, e em sua versão cultural, Bravo!, Olavo era colunista.
Além disso, Olavo foi organizador de volumes de obras do intelectual liberal Otto Maria Carpeaux, bancado pela UniverCidade (Universidade da Cidade, do Rio de Janeiro) e publicado pela Topbooks. O apadrinhamento por Carvalho não faz jus à trajetória de Carpeaux, mas mostra um método de ação: frequentemente, autores liberais, mas progressistas, foram “resgatados” por Olavo de Carvalho, que culpava a esquerda pelo suposto ostracismo desses intelectuais. Foi o caso, por exemplo, de Luís Martins, autor de O patriarca e o bacharel (Alameda), recomendado por Olavo de Carvalho como se ele não tivesse sido também um militante engajado do Partido Socialista Brasileiro na virada dos anos 1950 e um crítico de arte progressista, amigo de Antonio Candido. Apagar os vieses progressistas desses autores e apresentá-los como vítimas da esquerda era um método recorrente.
Já nos anos 2000, a busca por “intelectuais de direita” fica mais e mais evidente na imprensa brasileira. A iminente vitória eleitoral de Lula e depois o sucesso de seu governo – especialmente após sair das cordas do causo (o “u” aqui é proposital) do mensalão –, tornam a corrida para assegurar o posto de porta-voz da ultradireita cada vez mais concorrida.
Olavo de Carvalho inventa uma interpretação própria do pensamento de Antonio Gramsci, uma leitura que guarda pouca semelhança com o original, ecoando movimentos semelhantes protagonizados na própria Itália com relação às ideias do filósofo marxista. Esse caminho é repetido por muitos de seus epígonos, entre os quais se destacaram as figuras de Diogo Mainardi, Rodrigo Constantino e Marco Antônio Villa. Como ocorre com frequência, alguns destes nomes renegam a paternidade olavista, mas é possível encontrar os rastros do DNA de Carvalho em seus textos até hoje.
No início dos anos 2000, dois sites se destacam: Olavo de Carvalho comanda o Mídia Sem Máscara, fundado em 2002, que, esteticamente, fez tudo para parecer um “veículo independente”, e Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), mantido por ex-militares e viúvas dos coturnos do regime de 1964.
Com desenho pouco cuidadoso (como aliás também ocorreu com o Ternuma), numa aparente desordem informativa, num simulacro que antecipou a suposta pobreza da campanha de Jair Bolsonaro em 2018, o MSM iniciou ataques recorrentes e virulentos a intelectuais de diversos matizes ideológicos, sempre classificados como esquerdistas. Ali foram urdidas campanhas difamatórias, que tinham um intuito final, em geral bem sucedido: chamar a atenção para Olavo e olavetes.
Facebook/Reprodução
Autor de ‘O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota’ morre nos Estados Unidos uma semana após contrair covid-19
O MSM, apesar dos abusos incessantes, não serviu para afastar Olavo de Carvalho da grande mídia: pelo contrário, suas contribuições se tornam frequentes, enquanto emuladores de seu estilo ajudavam a fazer barulho cotidiano em grandes veículos, como Veja, Folha e afins (e depois rádios, como a Bandeirantes e a Jovem Pan). A audiência do MSM era significativa, e sua influência pôde ser notada, progressivamente, nos comentários de internautas nos principais portais do país. Certa vez, trabalhando num deles, um colega me perguntou o que eu acharia se o MSM virasse parceiro de conteúdo. Eu respondi que isso não era coisa que um trabalhador sugeriria ao patrão, no máximo um trabalhador aceitaria a contragosto uma decisão dessas. Felizmente, foi suficiente para que a discussão não prosperasse.
Em 2013, Olavo de Carvalho publicou seu livro mais influente: O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (Record), que vendeu centenas de milhares de exemplares e foi elogiado por muita gente, puxando a fila de uma série de livros direitistas publicados pela própria Record e por várias editoras que pegaram carona na onda, algumas fundadas exatamente para isso. No início de seu governo, Jair Bolsonaro pôs essa Bíblia da extrema direita brasileira sobre a sua mesa, em algumas de suas lives. No imaginário bolsonarista, é o livro civil que rivaliza em valor simbólico com o militarista A verdade sufocada, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o torturador-mor do DOI-Codi paulistano.
Olavo de Carvalho, definitivamente, assumiu então sem qualquer freio o papel do polemista que busca rebaixar seus adversários por meio de provocações baratas, xingamentos cada vez mais grosseiros e difusão de fake news e teorias conspiratórias – das quais a mais absurda é que a diz que a Pepsi usaria restos de fetos abortados em suas bebidas. Em 2015, Olavo de Carvalho cria seu canal no Youtube, onde oferecia cursos, reclamava que estava sem dinheiro e vez ou outra criava um caso. Fez campanha sem trégua contra Dilma Rousseff e pelo impeachment. Depois, faria o mesmo contra Fernando Haddad, espalhando que o candidato do PT a presidente em 2018 teria defendido o incesto em seu livro Em defesa do socialismo (Ed. Vozes).
As fantasias engajadas de Olavo de Carvalho não caíam no vazio. Sua legião de seguidores era grande, e um dos que ajudaram a espalhar essa fake news contra Haddad foi nada menos que Paulo Zanotto. Zanotto era “apenas” um pesquisador da USP, mas talvez não por acaso se tornaria um defensor apaixonado da cloroquina. É incrível que a USP tenha deixado sem punição, em 2018, um detrator de um colega (Haddad é também professor da universidade) – e um das consequências disto é que o gabinete paralelo da cloroquina contou com o verniz da maior universidade do país até a CPI da covid mostrar como ela funcionava.
Entre os fãs de Olavo de Carvalho, merece uma menção especial o cineasta pernambucano Josias Teófilo, que dirigiu um documentário sobre Olavo de Carvalho intitulado O jardim das aflições. Pra quem gosta de passar nervoso, é uma boa forma de como se constrói um monstrengo com pés de barro.
Olavo de Carvalho coroou sua trajetória intelectual com a minimização dos efeitos da covid-19. Ele, que namorou e sarrou o terraplanismo questionando a ciência newtoniana (sim, ele pôs em dúvida a lei da gravidade), teve como último capítulo de vida o questionamento da letalidade do coronavírus.
Em maio de 2020, afirmou que “o medo de um suposto vírus mortífero não passa de historinha de terror para acovardar a população e fazê-la aceitar a escravidão como um presente de Papai Noel”. Em janeiro de 2021, tentou ser sarcástico: “Dúvida cruel. O Vírus Mocoronga mata mesmo as pessoas ou só as ajuda a entrar nas estatísticas?”. Em 2022, o vírus bateu a sua porta na Virgínia (Estados Unidos) e avisou: “Chegou a sua hora, bebê”.
Morreu Olavo de Carvalho, o Olavo de Carvalho que de independente não tinha nada e que construiu sua carreira alimentando qualquer polêmica que lhe acarinhasse a vaidade. O filósofo de almanaque que citava sem nunca ter lido, mas que contava com a complacência de grandes veículos de comunicação.
Assim como rimos hoje vendo os vídeos de Enéas Carneiro, candidato a presidente em 1989 e 1994, falando bobagens sobre os mais variados assuntos, riremos dos vídeos de Olavo de Carvalho conseguindo juntar piroca, cu, culpa do PT e outros bordões sem sentido.
O problema é que muita gente vai continuar achando que ele era um filósofo, e não apenas um astrólogo charlatão. Um charlatão construído nas páginas de veículos da grande imprensa, que recorreram a ele e a seus discípulos para construir falsas dicotomias e criar um clima de que, se a razão morreu, então tudo é permitido.