Para os que reclamavam, céticos em relação ao aquecimento global ou não, das baixas temperaturas das três primeiras semanas oficiais do verão, a segunda metade do mês de janeiro apareceu contundentemente como compensação e castigo.
Para os menos tropicais, como eu, esses níveis de calor, que uma jovem dermatologista condescendeu certa vez não serem muito adequados à vida humana, implicam dificuldade de manter uma linha de raciocínio centrada e coerente.
Talvez por isso, ou não, várias ideias repicam com insistência frente à tela.
A primeira delas é a lembrança anacrônica mas divertida de um tempo em que os fumantes exercitavam uma pequena vingança cotidiana, cobrindo uma das faces do maço de cigarros com um adesivo onde se lia: Os fumantes advertem que o Ministério faz muito mal à Saúde.
Mas não podíamos imaginar que esse pequeno gesto de resistência (inútil, afinal) a um processo de estigmatização social crescente se revelaria anos depois como mera, direta e impactante constatação.
O órgão federal, a que já não sabemos como chamar (ministério da doença? da morte? da eugenia?), militarizado como outros setores do aparato estatal, se transformou num instrumento de operação ativa da necropolítica neoliberal com a tintura criptofascista do estamento militar brasileiro.
Estamento, com vontade de ser casta, que tem se mostrado oscilante entre o saudosismo dos anos 60 e a satisfação da vingança contra alguns setores da sociedade que chegaram a alimentar a ilusão de que a exemplo de Argentina, Uruguai ou Chile, também a sociedade brasileira poderia chamar de crimes os crimes cometidos por fardados.
Depois da encenação da resistência do militar da Anvisa, que emocionou parte dos progressistas carentes e serviu aos interesses nada ingênuos que se expressam por intermédio da grande mídia, a recente posição oficial do Ministério militarizado que tem como titular um laranja que já vestiu branco, conseguiu um recorde de retroatividade ao ressuscitar os mal chamados tratamentos precoces (depois de mais de 620 mil mortos) e se manifestar, agora oficialmente, contra as vacinas.
Planalto
Ministério da Saúde, militarizado como outros setores do aparato estatal, se transformou num instrumento de operação da necropolítica
O que repica no lembrete de um leitor atento da coluna anterior, de que o negacionismo de Djokovic talvez não fosse tão puramente new age, à luz da informação de seus interesses econômicos na indústria farmacêutica especialmente dedicada às precocequinas.
Resta o consolo de que a repercussão internacional do affair australiano lhe trará mais prejuízos, pelo impedimento da participação em outros torneios e pela possibilidade de que outros patrocinadores sigam o exemplo da marca do jacaré (ironia pura), do que os dividendos farmacêuticos.
Claro que sempre lhe restará a possibilidade, adorada pela mídia de celebridades, esportivas ou não, de um “sincero pedido de desculpas a todos que possam ter se ofendido”. A ver se a grana falará mais alto que a legenda do Spartacus do anarcocapitalismo.
Enquanto isso o número de moradores de rua continuará crescendo, como mostra de maneira precisa o artigo de meu amigo Nabil Bonduki na Folha de São Paulo. O que me trás o terceiro repique, da leitora igualmente atenta que observou sobre a minha coluna da semana anterior, que o texto era bom mas tecnicamente não caberia falar em refugiados.
Refletindo a respeito, apesar do calor, mantenho a caracterização porque já passamos da hora de entender que há uma guerra – literal e não figurada – contra a população pobre e majoritariamente negra neste país.
A criminalização da política, da esquerda e do PT em particular, são simplesmente parte da estratégia híbrida para a qual os especialistas vêm, reiterada e insistentemente, nos alertando.
Mas não estamos frente a um repique de 64 ou 68. É preciso muita carência para insistir em não ver que é muito pior.
*Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos