O Império, os patos e a supressão de voto (8)
Não se sabe se Joe Biden está esclerosado, como alegam seus adversários, ou simplesmente ansioso com os longos meses até novembro
Não se sabe se Joe Biden está esclerosado, como alegam seus adversários republicanos, ou simplesmente ansioso com os longos meses até novembro. A declaração de que Vladimir Putin deve ser retirado do poder foi um ato falho tão gritante que o Departamento de Estado norte-americano teve que se pronunciar imediatamente dizendo que o presidente não quis dizer o que disse.
Como está mais do que claro que os Estados Unidos não têm o menor interesse e, portanto, não permitirão que Volodymyr Zelensky assine nenhum acordo de paz, a questão é saber o quê exatamente aquele ato falho revela.
Pode ser o desejo de apagar o fiasco da retirada do Afeganistão por meio da glória de se livrar de um grande inimigo “da democracia e do mundo livre” e assim inserir seu nome na ilustre linhagem dos presidentes que mataram os inimigos de ocasião, como Bush Jr. a Sadam Hussein e o Nobel da Paz Barack Obama a Bin Laden e Muammar al-Gaddafi.
As camadas tectônicas da geopolítica se movem em largas durações e em direções determinadas por forças profundas, mas, na microescala dos eventos, indivíduos e suas circunstâncias têm um papel de aceleradores ou retardadores desses movimentos.
A hipótese de que o ego de Biden esteja mobilizado nessa direção não exclui nem anula a preocupação, dele e de todo o establishment democrata, com as eleições de metade do mandato em novembro. Biden estaria então tentando evitar uma derrota que a maioria dos analistas considerava, até um mês atrás, inevitável e, talvez, definitiva.
Para alguns não é apenas o poderio econômico do império que se encontra em rota de declínio mas também o mito da sociedade norte-americana como modelo de democracia. Afinal, boa parte da população acredita que a vitória de Biden foi fraudada e a quase totalidade da representação republicana no Congresso e no Senado considera legítima a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Nossa cultura eleitoral, por mais problemática que seja, nos ajuda pouco a entender as distorções daquela que a grande mídia nos vende como a maior democracia do planeta.

White House
EUA não têm o menor interesse e não permitirão que Volodymyr Zelensky assine nenhum acordo de paz
Estamos acostumados a estranhar o sistema de eleição indireta que permite que um presidente possa obter a maioria dos votos individuais e não ser eleito. Anacrônico ou não, isso expressa o caráter particular do federalismo dos EUA. Mas as distorções do sistema político são muito maiores e não tão conhecidas.
Nessa democracia tão particular, as eleições são realizadas numa terça-feira de novembro, que não é feriado. Ou seja, o trabalhador assalariado depende de autorização do patrão para se ausentar ou de se dispor a perder um dia de salário para exercer um voto que não é obrigatório.
Esse é apenas o primeiro dos mecanismos da chamada supressão de voto, um conjunto de manobras legais para dificultar ou impedir o voto de setores determinados da sociedade, muito especialmente a população negra e, em menor medida, latina.
No Brasil, os partidos precisam convencer seus eleitores a votar. Lá o esforço é duplo: convencer os seus a votar e evitar o voto dos adversários.
Como não há uma legislação eleitoral unitária, os estados tem autonomia para definir os requisitos para votar; o que consta na cédula eleitoral; se o voto pode ser enviado pelo correio: quais os prazos e quem são os responsáveis pela apuração e por eventuais recursos e uma infinidade de etc.
Os estados sob governos republicanos perderam o pudor e estão deformando as regras e sistemas de votação em boa parte do país, na maior supressão de voto das comunidades negras, tradicionalmente democratas, em décadas.
Biden tentou aprovar, via legislação federal, o estabelecimento de limites para a supressão de voto mas não conseguiu nem mesmo a coesão de sua bancada.
A derrota desse projeto em janeiro e o reconhecimento já assumido de que o grande programa de infraestrutura também não será aprovado deixaram aos democratas o patriotismo guerreiro como última esperança ante o provável tsunami de novembro.
Funcionou para Clinton, Bush e Obama. Funcionará para Biden?
(*) Carlos Ferreira Martins ´é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.