Domingo, 20 de abril de 2025
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O cessante parlamento alemão aprovou a Emenda à Lei Fundamental que pôs fim ao Freio da Dívida [Schuldenbremse] de 2009, um equivalente germânico ao Teto de Gastos ou Arcabouço Fiscal do Brasil. Se os alemães optaram por uma metáfora automobilística, e os brasileiros aludiram à construção civil, a serventia é a mesma: limitar o investimento público ao sabor da banca – o fim do mecanismo alemão, contudo, tem a ver com ampliação dos gastos militares.

Longe de ser uma boa notícia, ou um exemplo para o Brasil, a medida alemã é um controversa volta ao que pode ser chamado “keynesiano militar”, conforme Mike Roberts colocou em um artigo grandioso, recentemente publicado no Outras Palavras, mas também Yanis Varoufakis em suas redes sobre a decepção com o Linke, partido da esquerda alemã. Isso, no entanto, merece um reparo: neoliberalismo militar parece ser um termo mais adequado.

Ainda que preveja medidas para a infraestrutura, a medida é centrada na reorientação da economia alemã para a guerra, com fábricas de automóveis da Volkswagen sendo reconvertidas para fabricar tanques. Isso não coloca fim à austeridade geral da Alemanha, mas destina recursos – que os seguidos governos alemães sempre alegaram não ter, fosse para a área social ou para economia normal para finalidades pacíficas.

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Isso apenas reforça a lógica da guerra, hoje materializada no conflito na Ucrânia, em que Berlim foi envolvida pela administração Biden – às custas de suas vantajosas relações comerciais com a Rússia. Parece, portanto, ser uma aposta redobrada no atoleiro, em uma rebeldia contra Donald Trump em meio às disputas internas na Alemanha e na Europa, mas também externas junto à opinião pública dos Estados Unidos.

Ainda, o fato do Linke ter votado contra a medida na Câmara, mas mudado de posição no Senado [Bundsrat] foi chave para a aprovação da Emenda, o que traz à tona crise ideológica da esquerda radical alemã: se para se manter no Parlamento, e ampliar seus votos, o Linke adotou posturas mais moderadas, principalmente em política externa, nas últimas eleições, agora seu giro mostra o que pode estar por vir.

 Os zigue-zagues de Friedrich Merz

O premiê eleito da Alemanha não tomou posse ainda, uma vez que formalmente a coalizão de governo não foi sacramentada, então segue o parlamento eleito em 2021. No entanto, até as pedrinhas da rua sabem que os social-democratas, derrotados nas recentes eleições, serão os sócios minoritários dos democratas-cristãos de Merz. O atraso talvez se deva ao fato de que o novo parlamento não teria maioria qualificada de 2/3 para mudar a Lei Fundamental.

Com os votos de social-democratas, democratas-cristãos e verdade, com três exceções pontuais, a Emenda passou com 512 a favor e 206 contra, mas isso não teria acontecido na nova composição do Bundestag – ou melhor: para acontecer, seria necessária a adesão do Linke. No entanto, o Linke, que, como sabemos, vetou no Bundestag, mas mudou de posição no Senado, o que foi decisivo lá e, também, lhe gera agora uma crise interna.

O mais estranho em toda a história é que a Emenda surgiu em discussões que envolveram o alto capital alemão, alcançaram o todo-poderoso Banco Central e, depois, geraram um debate duro dentro da social-democracia. O belicoso, obscuro e, no entanto, popular ministro da Defesa Boris Pistorius foi central na proposta, o que gerou uma série de debates entre as correntes social-democratas, que lhe aprovaram – mas o governo Scholz caiu por isso.

Merz, enquanto líder da oposição, foi contra a proposta da Emenda, enquanto os liberais-democratas, que chefiam o Ministério das Finanças se opuseram e se retiraram do governo, derrubando a coalizão que governava a Alemanha desde 2021  – o premiê social-democrata tentou salvar seu governo em dezembro, mas perdeu a moção de confiança graças aos votos democratas-cristãos, o que antecipou as eleições vencidas por Merz.

Qual não foi a surpresa de que Merz, uma vez eleito, não apenas convidou o partido derrotado para sua coalizão como, ainda, incorporou justo a pauta que derrubou o governo social-democrata – e mesmo excluindo os verdes dessa futura coalizão, contou com a boa vontade deles para aprovar a Emenda no parlamento cessante. Por essa razão, não falta quem mencione um estelionato eleitoral de Merz diante de suas mudanças de posição.

Esses constantes zigue-zagues vêm de longe. Merz foi opositor à direita de Angela Merkel na Democracia Cristã, criticando ela inclusive por posições supostamente muito lenientes com Trump, na primeira presidência dele. Ainda, Merz se opôs inicialmente à guerra na Ucrânia, mas deu um cavalo de pau rapidamente no início de 2022. Nada de novo, mas talvez o eleitor alemão só vá entender isso agora, depois do seu voto de punição.

A mistura dos partidos tradicionais na Alemanha: como a extrema direita ganha com isso 

A história confusa da aprovação da Emenda, contudo, mostra uma indiferenciação entre as forças políticas dominantes da Alemanha. Em 2009, quando Merkel aprovou o Freio da Dívida, ela teve o apoio dos social-democratas, que integravam seu governo. Meses depois, ela venceu as eleições e chutou os social-democratas da sua coalizão, governando apenas com os liberais-democratas. Isso se reverteu em 2013, com os social-democratas de volta.

Antes, em 2003, a coalizão de social-democratas e verdes, liderada pelos primeiros, implementou a Agenda 2010, que marcou o desmoronamento da economia social de mercado, edificada pelos democratas-cristãos após a Segunda Guerra – que sofria oposição à esquerda dos social-democratas que, no entanto, beijaram a cruz e passaram para dentro do jogo na Alemanha Ocidental. Décadas depois, eles foram seus algozes.

Tanto a Agenda 2010 de 2003 quanto o Freio da Dívida de 2009 marcaram a passagem da Alemanha para o neoliberalismo, décadas depois de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos. Foi nesse cenário que nasceu o Linke, formado por militantes da antiga Alemanha Oriental que integravam o Partido do Socialismo Democrático, junto com a dissidência de esquerda dos social-democratas.

Inicialmente, em 2007, o Linke era o partido anti-establishment, mas logo ele integrou coalizões de governo com suas benesses – inclusive em Berlim – ou governou estados como a Turíngia, o que domesticou o partido – enquanto a crise social causada pelo neoliberalismo avançava, sendo habilmente manipulada por uma extrema direita alemã renascida e, novamente, tolerada no jogo político.

De repente, a extrema direita fundou o seu próprio partido de massas, o Alternativa pela Alemanha (AfD), e tomou para si a insígnia do anti-establishment, se colocando como o único partido diferente – enquanto é financiada pelos ricos, e mais tolerada pelo aparato repressor alemão em comparação às esquerdas, uma vez que o Gabinete de Defesa da Constituição equipara o fascismo ao comunismo.

O campo de esquerda, por sua vez, ao se confundir com as direitas, faz o que o que a extrema direita precisava para se proclamar a única força “diferente” – primeiro com os social-democratas caminhando ao centro e se dissolvendo em um caldo comum com os democratas-cristãos, agora com o Linke ajudando o establishment na aprovação da Emenda, passando pela capitulação dos verdes nos anos 1990.

A Alemanha como espaço estratégico central do “continente” Europeu

Continentes, a bem da verdade, são conceitos geopolíticos, os europeus trataram de nomeá-los e, assim, situá-los de acordo com seus planos. A busca de um fundamento geográfico para o termo, ironicamente, esbarrou na própria Europa: ela não é um continente, mas sim uma península da Ásia. Sua existência como algo autônomo se deu pela integração promovida pela cristandade, mas não existia até a Idade Média.

Nos primórdios, Europa e Ásia eram, apenas, regiões opostas, respectivamente ao ocidente e ao oriente do mar Egeu. Depois, elas se tornaram conceitos elásticos. A consolidação dessa Europa sempre teve uma realidade de potências nas suas extremidades oeste (a França, mas depois Espanha e Portugal) e leste (a Polônia, depois em companhia com a Lituânia, sucedida pela Rússia) até a unificação da Alemanha nos anos 1870, quando surgiu um núcleo duro.

O velho espaço descentralizado e flexível do Sacro-Império Romano Germânico do século IX foi substituído por um Estado centralizado e coeso. Os acordos precários das décadas seguintes buscaram organizar o colonialismo europeu – nas conferências de Berlim – e ordenar a relação entre as potências, mas o desequilíbrio de forças com o avanço do Império Alemão sobre o Império Britânico, e erros políticos, levaram à Primeira Guerra Mundial.

A Alemanha unificada demandou um tipo de tessitura de acordos, cujo desequilíbrio levaria à guerra – como terminou por acontecer em 1914 e 1939. Isso só foi detido às custas da paz armada da Guerra Fria, com americanos e soviéticos dividindo o espaço alemão. Também não é de se desprezar que a destruição da Alemanha, sua reconstrução contida e ordenada sob o ordoliberalismo no oeste e o socialismo real no leste, o que contribuiu para a paz. 

O fim da União Soviética e da Guerra Fria foi contrabalanceado, por seu turno, pela integração europeia e, depois, com uma integração econômica assimétrica e errática com Moscou, mediante o comércio do gás, o que já estava em curso nos anos 1980. O modelo econômico interno alemão ocidental, igualmente, era um fator autônomo para a paz, mas sem a rivalidade socialista, seria – como foi – rebaixado pela elite econômica local.

O elemento interno da reconstrução alemã do pós-guerra não pode ser desprezado. Mas, igualmente, não podemos ignorar como sua existência se dava num contexto de concorrência com o socialismo real, no qual a Alemanha Ocidental tinha de prosperar. Sem esses riscos, a elite econômica alemã se viu livre para defender sua “disfuncionalidade” ou “desatualização” e abraçar o neoliberalismo.

A cabeça de ponte “democrática” chegando à Ucrânia e o esgarçamento europeu

Não à toa, grande parte das reflexões de Henry Kissinger sobre o pós-Guerra tratam do espaço vazio deixado pela queda da Alemanha em 1945. As grandes negociações entre soviéticos e americanos giraram em torno de como estabelecer essa divisão. A Alemanha ora como espaço flexível ora como espaço rígido muda, por completo, o equilíbrio europeu e mundial, com consequências graves. 

Nos anos 1990, O grande tabuleiro de xadrez, livro seminal de Zbigniew Brzezinski, a contraparte democrata de Kissinger, tratava da nova ordem mundial e a ideia de expansão da Otan para leste europeu, mesmo após a queda dos socialismo real – apontada, durante a Guerra Fria, como a única causa da presença militar americana na Europa; no entanto, havia interesses mais diretos e concretos.

Brzezinski dedicou um capítulo inteiro de seu livro à necessidade de uma “cabeça de ponte” que iria da França até a Ucrânia, naturalmente, sob o domínio americano. É óbvio que isso demandava a expansão da Otan até o mar Negro e, “eventualmente” até a Ucrânia. Mesmo entusiastas da détente como Kissinger se colocaram a favor desse avanço nos anos 1990, embora ele, em particular, tenha voltado atrás disso nos anos 2000.

O republicano George Bush Filho freou essa expansão, brevemente, em 2001 até a oposição de Vladimir Putin à Guerra do Iraque, o que levou ao avanço da Otan para o leste em 2004, chegando à costa oeste do mar Negro com a assimilação da Bulgária e da Romênia. Tudo isso anteviu a tragédia da Guerra na Ucrânia de 2022, o que foi o segmento de um conflito armado desde 2014, e tocado no banho-maria desde então.

Mesmo a derrota dos democratas nas eleições de 2024 não mudou a posição europeia, dominada por forças políticas alinhadas ao Partido Democrata e hostis ao governo Trump, este retornado em termos mais radicais, que em virtude de sua agenda particular na economia, age para frear o conflito ucraniano – e como o leitor atento deve lembrar que tratamos há quinze dias.

Portanto, para além da panorâmica de Mike Davis, abordando o rearmamento em várias frentes na Europa, a questão do rearmamento alemão nos parece de uma natureza mais grave e perigosa. Sem fontes energéticas próprias e apartadas da Rússia pela natureza do conflito, os alemães rearmados se veem em uma situação semelhante às duas guerras mundiais, quando trocaram a colaboração e o comércio pelas armas.

O neoliberalismo militar

Por outro lado, há uma distinção apenas relativa entre a economia alemã de hoje e a dos anos 1930, quando o liberal Hjalmar Schacht foi ministro das Finanças de Adolf Hitler. O nazismo nunca tocou adiante uma economia estatal, mas sim amplamente privada e liderada pelas suas grandes corporações, redirecionadas para o campo bélico, como sempre nos lembra o professor Luiz Gonzaga Belluzzo.

O que se pode chamar de economia política nazista teve menos fundamento em uma teoria sólida própria. Ela foi um arranjo liderado por tecnocratas liberais como Schacht. A resposta para isso, com a Alemanha destruída, foi o ordoliberalismo alemão, que genuinamente se opôs a Hitler já nos anos 1930, com Konrad Adenauer à frente – mas não podemos omitir a grande quantidade de quadros nazistas admitidos nas fileiras democratas-cristãs.

Ainda que sobre o peso da divisão e da polarização das duas superpotências em seu território restante ao final da Guerra, a Alemanha Ocidental edificou um modelo de capitalismo centrado em uma generosa rede proteção social e integração continental e global. Esse elemento persistiu, em termos, mesmo com a reunificação – a anexação da Alemanha Oriental – não mudou isso pela integração econômica russo-alemã.

Se o termo “keynesianismo militar” é, em grande medida, uma ironia injusta com John Maynard Keynes – por sua observação acerca de que os governos só acreditam em suas teorias sobre o investimento público em um cenário de guerra – aqui, isso é uma imprecisão. Trata-se, pois, de uma versão de militarismo que une a austeridade ao gasto sistemático e grandioso no setor bélico, semelhante à economia de Reagan nos Estados Unidos.

Se nos anos 1910, a capitulação da social-democracia à agenda bélica da burguesia alemã contribuiu, enormemente, para a Primeira Guerra, a postura do Linke é uma repetição farsesca do mesmo, ainda mais depois que o bloco parlamentar anti-imperialista de Sahra Wagenknecht foi deixado de fora do parlamento – em grande parte pela brutal má vontade do establishment alemão com ela, contrastado com sua boa vontade com o atual Linke.

Com a ruptura imposta, a partir dos Estados Unidos, das relações comerciais russo-alemãs sobre a questão energética – que possuíam natureza, a bem da verdade colonial, favorecendo a Alemanha – junto da mudança do caráter do capitalismo alemão nos anos 2000, para uma vertente liberal mais radical, produz-se uma bifurcação: ou uma reversão [pelo menos parcial] dos rumos tomados ou um aprofundamento que culminará em guerra.

Epílogo: uma Reaganomics que fala alemão significa algum tipo de catástrofe

Uma versão alemã da Reaganomics, em razão da falta de reservas energéticas no seu próprio território ou sob seu domínio, impele a nação germânica à guerra, mesmo tendo uma sociedade que construiu sua subjetividade longe da caserna – o que pode tornar os efeitos disso além de mau, em algo ruim. Sem uma ruptura à esquerda com isso, a Alemanha cairá inexoravelmente nas mãos da extrema direita para, ironicamente, alcançar a paz.

Nesse sentido, a Reaganomics, que drenou recursos de vários setores para uma política belicista nos Estados Unidos, foi um equivalente light, e em um posição superior, da economia de guerra nazista, cujo escopo não foi gerir seus domínios, mas adquiri-los – diante da insuficiência energética do território alemão, o que demandou a conquista de um espaço vital para todos os lados, colocando o país em inúmeras e desastrosas frentes.

A AfD sabe muito bem que a única forma de realizar o neoliberalismo, ao qual ela não se opõe, dentro de um ambiente de paz é necessário reatar com a Rússia, cujas relações eram amplamente favoráveis à Alemanha – apesar disso favorecer a uma fração ocidentalista da oligarquia russa. Isso produz um efeito que bagunça o coreto de quem vê a atual polaridade política alemã, mas também global, como um jogo de democratas (liberais) versus fascistas.

Sem o combate a uma economia política comum, que produz essa polaridade, as esquerdas estão presas – lá e em toda parte – à condição de Sísifo na mitologia grega, empurrando uma pedra até o alto de uma montanha até ela rola, lhe obrigando a retomar o trabalho: eleger uma frente democrática que, ao chegar ou retornar ao poder, tropeça nas próprias pernas, trazendo a extrema direita de volta.

Isso se torna perigoso na medida em que a banda liberal-democrata dessa polarização estéril se torna, ironicamente, o partido da guerra, em uma escalada que se torna perigosa – seja na Ucrânia ou na Palestina, mas também pode estourar em outras partes sensíveis do mundo, como a Coreia, o Estreito de Taiwan, a África Ocidental ou, até mesmo, na nossa América Latina.

Por mais que a esquerda seja marginal, e minoritária, em um país como a Alemanha, sua anuência é necessária, como foi na Primeira Guerra. Sua traição pode ser, novamente, a pedra de toque para um grande desastre – mas o que vemos até aqui não é bom, nem muito animador. Não é possível, de todo modo, abraçar uma política nacional-chauvinista para vencer fascistas, pois a “vitória” seria se tornar um deles.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.