A arrasadora derrota da esquerda em Portugal
Embora extrema direita não tenha feito o maior número de deputados, foi a grande vencedora das eleições em Portugal, por ter aberto caminho para sua normalização
Muitos estão sobressaltados com a derrota acachapante da esquerda em Portugal e o avanço persistente e significativo das forças neofascistas nessas eleições legislativas antecipadas[1]. Confesso que, para quem estuda o processo de neofascistização da Europa nos últimos 20 anos, não é nenhuma surpresa.
Os resultados apontam para uma vitória da coligação de direita Aliança Democrática (AD), formado pelo Partido Social Democrata (PSD) e o Centro Democrática Social – Partido Popular (CDS-PP), com 90 deputados. A segunda força política é o Chega, de extrema-direita, com 60 deputados, e na terceira posição o Partido Socialista, com 59 deputados – números provisórios tendo em vista a tendência dos resultados da eleição de 2024. Na sequência temos a Iniciativa Liberal, que ficou com 9 deputados, o partido Livre, com 6 parlamentares, a Coligação Democrática Unitária (CDU) – Partido Comunista e “Os Verdes” – que ficaram com 3 deputados, o Bloco de Esquerda (BE), que elegeu apenas a sua líder, assim como o partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN); e o Juntos pelo Povo (JPP), um partido regional da Ilha da Madeira, que também elegeu 1 parlamentar.

(Foto: Partido Social Democrata / Flickr)
A aposta do primeiro-ministro demissionário, Luís Montenegro, da AD, ao forçar ir para eleições, tinha como fim ser “absolvido” pelas urnas das suas atividades empresárias suspeitas e conseguir uma maioria absoluta (ou com um acordo de incidência parlamentar com a IL). A tática nesse sentido foi pouco efetiva, porque ficou muito longe dos 116 deputados necessários para superar a maioria relativa. Tudo caminha para se ter um governo de “bloco central” mais declarado, o PS sendo a força capaz de viabilizar o governo do PSD-CDS – assim como fez no ano passado, visto que o Chega se coloca à frente para liderarem a oposição parlamentar.
O crescimento eleitoral do Chega, tornando-se a segunda força política, é uma vitória muito mais expressiva do que a da AD. Por quê? Podem se perguntar alguns, visto que o partido de André Ventura não chegou ao governo. O ponto central para mim diz respeito a algo que tenho analisado e escrito numa perspetiva mais geral da Europa: a tendência para a normalização e integração das forças reacionárias e neofascistas pelas forças políticas, da comunicação social, etc., dentro do regime político liberal. No caso lusitano, o governo do PSD-CDS optou pela cheganização, isto é, alimentando o processo de fascistização social e político dos últimos tempos – Portugal “só” foi um dos mais longos impérios colonias (forjado no racismo) e a ditadura fascista mais duradoura na Europa.
O governo conservador da AD decidiu abraçar, não só retoricamente, mas enquanto prática do governo, as pautas securitárias (insegurança e medo), racistas e anti-imigração mascaradas de um pseudo-humanismo – a existência de vários problemas graves e de longos anos, a dificuldade (projetada) que os aparelhos do Estado têm de tratar e resolver a documentação dos trabalhadores imigrantes que chegam em Portugal. A cheganização do governo veio normalizar a falsa propaganda da extrema-direita de que a “imigração está descontrolada”, de que existe uma relação entre imigração e criminalidade, etc. A tática eleitoral de Luís Montenegro era a de trazer essas pautas para o seu campo, a imaginar que “esvaziaria” o Chega. Errou. A cheganização não teve efeito eleitoral esperado, os setores mais reacionários e racistas não tiveram dúvidas, entre o original e a cópia, ficaram com o primeiro – a propaganda racista contra os portugueses da etnia Roma (cigana), na última semana de campanha comprova tal escolha eleitoral.
Uma outra face desse processo político é que o Chega parece galvanizar os votos de setores abstencionistas e descontentes com os 50 anos de governos do PS (que só tem o nome de socialista) e o PSD, ou ainda, entre neoliberais puro-sangue e neoliberais progressistas. Portanto, com o acentuar do empobrecimento da classe trabalhadora (nas suas franjas mais baixas e intermédias) nos últimos anos, ou seja, com o brutal aumento do custo de vida, abre-se espaço para que forças políticas capazes de se apresentarem (mesmo que de forma falsa e oportunista) como antissistema ganharam tração e força sociopolítica. Nesse sentido, busca reforçar esse “espírito do tempo” com uma retórica agressiva. Por exemplo, ainda noite eleitoral, disse que os adversários que acham que eles são agressivos, “é porque ainda não viram nada”; ao mesmo tempo que apresenta um discurso “acolhedor” daqueles que “se sentem traídos e abandonados pelo sistema” – estão excluídos todos os racializados e considerados não-portugueses. Mas, sobretudo, consegue apontar para o futuro e dizer “estamos quase lá” (chegar ao governo), portanto, vão vencer e a começar pelas “eleições autárquicas [municipais]” desse ano.
A armadilha desse discurso neofascista é conseguir articular e associar as forças de esquerda ao passado, portanto, aos próprios valores estruturantes do 25 de Abril de 1974, como sinônimo do sistema, de empobrecimento, de falta de moradia etc., e de deslealdade. A fim de se apresentar como a única força capaz de ser “transformadora” ou “insurrecional” (reacionária) para um futuro grandioso que Portugal teve no passado. Mobiliza um imaginário político em que a possibilidade de algo diferente (na sua forma fascista) é possível. Esse é o ponto que a derrota avassaladora da esquerda, especialmente a comunista e revolucionária, parece não entender.
Os resultados eleitorais são reflexões de derrotas políticas no longo do tempo, a domesticação dos vários setores da esquerda moderada e a radical pelos marcos do regime político neoliberal engessou-se de tal forma que outras sociedades alternativas e perspectivas de futuro são capturadas pelos neofascistas – os governos com cores de esquerda representam no imaginário de muito setores das classes subalternos aqueles que veem passar um reboco fino e mal feito numa casa que está a rachar as suas estruturas. Em 50 anos da Revolução dos Cravos, essa é a menor votação da esquerda lato sensu; será que não chegou o momento de fazer um acerto de contas para entendermos como chegamos a esse ponto da história?
Por isso tenho insistindo, nesse momento de fascistização em escala global, que só se enfrenta as forças reacionárias e neofascistas com uma esquerda radical, que consiga apresentar uma sociedade alternativa e emancipadora, por uma vida justa e liberta da exploração e espoliação; que seja intransigente na defesa das suas pautas, portanto, não traia os seus ideais políticos; que no combate ao racismo, ao machismo e a todas as opressões sejamos implacáveis. Vivemos um tempo de policrise de alta intensidade, o espírito da revolta, da indignação e insurrecional ronda o mundo, o problema é que os fascistas têm se apropriado dele para defender o próprio capitalismo do beco (“sem saída”) que poderá levar a humanidade à barbárie e extinção. Mas lembremos das palavras de Mario Benedetti:
“Não te rendas, ainda há tempo
de alcançar e começar de novo,
aceitar tua sombra
enterrar os teus medos,
largar o lastro,
retomar o voo.”
[1] Essas eleições foram motivadas por problemas éticos e suspeita de lobby, por parte do primeiro-ministro. Isto é, num país de regime parlamentarista (ou semipresidencialista), quando um governo minoritário apresenta uma moção de confiança e ela é reprovada, temos novas eleições para escolher “novos” deputados para formar um novo governo.
