Neste exato momento, enquanto a Assembleia-Geral da ONU transcorre em Nova Iorque, duas catástrofes globais estão em curso pelas mãos do Ocidente: Israel avança sobre o Líbano – com bombardeios massivos, atingindo alvos civis e ameaçando uma invasão terrestre – e o regime ucraniano encena um pedido de “autorização” para a OTAN para, assim, poder bombardear todo o território russo, inclusive a capital Moscou.
Em qualquer um dos dois casos, poderemos ter o risco de generalização do conflito, o que na medicina se diria uma metástase. Embora o senso comum liberal diga, quando muito, que Rússia e Israel são “igualmente agressores”, os fatos não são bem esses, uma vez que em ambos os casos há um confronto pelo qual o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, entrou em choque com zonas de circulação econômica que desafiam sua ordem.
Seja mediante a expansão prática da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para a Ucrânia, desencadeando um conflito de proporções bíblicas contra a Rússia, quanto em um jogo que mira o Irã no Oriente Médio, mediante a intervenção de Israel, temos o mesmo cenário: em um choque de placas tectônicas, a “ordem unipolar” age de forma disciplinar para atingir centros de poder, ou seus regimes, dissidentes e “multipolaristas”.
A simetria Ucrânia/Palestina não se sustenta, quando a única verdade possível é que a Faixa de Gaza e Donetsk são o verdadeiro duplo, duas regiões nas quais o hegemon global decidiu que toda anomia seria permitida – e as vidas dali não importavam. E a reação a isso, naturalmente, seria considerada violência e ameaça às regras – aquelas, baseadas na sereníssima ordem que governa ao mundo, aos trancos e barrancos, desde os anos 1880.
Kiev, Tel-Aviv
No caso ucraniano, a administração Biden fez uma aposta ousada em uma guerra econômica que liquidaria Putin e as forças hegemônicas na Rússia. No caso israelense, o inesperado levante dos palestinos, de 7 de outubro do ano passado, respondia não só ao cerco piorado do governo Netanyahu contra o povo de Gaza quanto, ainda, confrontava uma tentativa de inserir Israel em uma zona de circulação de capitais com as monarquias do Golfo.
Nos dois casos, a vitória do Ocidente demanda ultrapassar linhas vermelhas, se arriscar e contar que advertências iranianas ou russas sejam blefes. No meio do caminho, vidas ucranianas são transformadas em peões de um tabuleiro para atacar a Rússia, sob o discurso da “defesa da soberania” que em último caso é a soberania da OTAN, enquanto as vidas palestinas martirizadas servem de recado para insurgentes islâmicos, sobretudo para o Irã.
Os dois casos colocam os regimes políticos russo e iraniano em uma situação que eles nunca, realmente, desejaram; isto é, a de excluídos do sistema global – no qual eles pretenderam se integrar de maneira soberana. Putin é a vitória do nacionalismo sobre o neoliberalismo dos anos 1990 na Rússia, mas é também um triunfo sobre o comunismo; e o Irã é algo da mesma ordem em relação à antiga monarquia submetida ao Ocidente, sem afrontar o capitalismo.
Ao produzirem um curto-circuito na ordem global sem, necessariamente, advogarem pela derrubada do capitalismo, Teerã e Moscou descobrem que os limites do capitalismo não são apenas subjetivos, mas têm uma ordem objetiva – e que capitalismo, como bem notou Lenin, é sobre exploração de nações por nações, acima da exploração do trabalho pelo capital no sentido mais óbvio.
Socialismo ou catástrofe?
Sob tudo isso remanesce a China, e seu processo bastante próprio de acúmulo de forças dentro de seu sistema socialista – quase que em uma versão global do que foi o Soviete de Ruijin dentro do território chinês nos anos 1930, isto é, uma ilha socialista em meio a um mar capitalista, pronto a ser o contra-exemplo da máxima do presidente Mao sobre a síntese ser quando “o peixe grande devora o peixe pequeno” – A história dele mesmo contradisse isso.
E aí mora a segunda camada do problema, de como os arranjos chineses sob “capitalismos nacionais” no seu entorno são uma ameaça dupla, pois eles têm como espinha dorsal um sistema que, na hipótese mais atenuada, não é “neoliberal” e ameaça, apenas por sua natureza e efeito gravitacional, a estrutura da Ordem Imperialista, que aos trancos e barrancos se seguiu à Conferência de Berlim de 1884.
A próxima Cúpula dos BRICS, a ser realizada na cidade russa de Kazan, poderá gerar uma moeda comum para o bloco, um mecanismo de trocas que substitua o Swift e, quem sabe, aperfeiçoe seus mecanismos financeiros. Será essencial, mas ela terá de responder, nem que seja nos bastidores, sobre o avanço do imperialismo diretamente sobre países do seu bloco e o que deverá ser feito.
Em meio à percepção cada vez mais acelerada da gravidade da crise climática, e o estado inercial que nos conduz a uma Terceira Guerra, fica a antevisão de Engels sobre a Primeira Guerra e como no fim o socialismo real, apesar dos seus pensares, foi um elemento que atrasou a Terceira Guerra: não por criar uma polaridade neutralizante, mas por ter incidido por baixo e por dentro de toda parte, paralisando razoavelmente as máquinas de guerra.
O Brasil na Assembleia-Geral
Nesse cenário, o discurso brasileiro na Assembleia-Geral, apesar de polido e humanitário, apenas revela necessidades da política interna, o diálogo da Frente Ampla com setores liberais internacionais e uma busca para escapar das armadilhas do Ocidente. Os caminhos são tortuosos e exigem cautela, mas também se corre o risco de terminar em um apelo naïf e abstrato à paz.
Obviamente, a crise atual é menos porque as instâncias das Nações Unidas estejam mal-arranjadas, ou não sejam inclusivas, mas pelas relações reais de ordem econômica e política que produzem países opressores – e estes muito bem organizados em bloco – e países oprimidos. Por outro lado, assaltam as dúvidas sobre se apenas o – necessário – rearranjo estratégico dos oprimidos seja suficiente. Onde estará a política antagônica?
A outra grande questão é se a insistência em uma resposta unicamente diplomática, pelo menos como narrativa, evitaria mesmo a guerra, ou se isso não pode, dialeticamente, acelerar um conflito mundial, se não houver certeza de uma resposta em relação a um avanço imperialista. O cenário em que chegamos é pior do que aquele descortinado antes e durante a pandemia, e isso precisa ser encarado sem meias palavras.
*Em homenagem à camarada Nathalia Urban, que nos deixou tão cedo.