18 de março, mais um aniversário da majestosa experiência da Comuna de Paris. Experiência que propiciou, por dois meses apenas, a possibilidade concreta de um outro tipo de sociedade. Uma sociedade onde a Solidariedade e a Fraternidade, valores depreciados no mundo atual, fundamentam a luta pela Igualdade e a Liberdade.
Experiência única, detalhada e analisada em três textos insuperáveis, escritos em épocas distintas, mas comprovando o caráter revolucionário e intemporal pela forma como se reafirmam um após outro. São textos que, pela atualidade de seus parâmetros revolucionários, devem ser lidos e relidos pelo muito que trazem de ensinamentos para os que lutam pelos mesmos objetivos nos tempos de hoje: “Guerra Civil na França”, “Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891” e “Em Memória da Comuna”.
O primeiro é de Marx, elaborado a quente, e tornado público ao ser apresentado diante do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores no dia seguinte ao do desfecho trágico da Comuna: O segundo, vindo à luz 20 anos depois, é o prefácio de Engels, para a reedição da obra de Marx em 1891, e cuja leitura, não menos brilhante que a do primeiro, serve, pela caracterização de deficiências das duas correntes hegemônicas da Comuna – maioria Blanquista e a minoria Proudhoniana –, para conclusões sobre a inevitabilidade da derrota dos revolucionários, expostas e ampliadas no terceiro, da lavra do então perseguido, mas sempre resiliente, Vladimir Ilich Ulianov, o clandestino Lênin, escrito 40 anos depois:
Trata-se, enfim, de leitura indispensável e necessária como contraponto aos tempos atuais, em que niilismo e identitarismo fragmentado contribuem para uma desalentadora despolitização e crescente perda de consciência de classe do hoje não menos fragmentado mundo do trabalho.
Leitura indispensável nos tempos atuais, quando recuperamos a razão, narrada por Marx, encontrada pelo cúmplice de Adolphe Thiers – o grande algoz, traidor, que se une a Otto von Bismarck, ocupante, para esmagar a Comuna – ao definir o que se passava em Paris, e contra quem a burguesia tinha obrigação de se mobilizar em armas, sem escrúpulos para o massacre consequente:
“Jules Favre, pela primeira vez na vida, conteve a língua, esperando em silêncio a explosão da guerra civil para, então, denunciar freneticamente o povo de Paris como um bando de reclusos evadidos em revolta aberta contra a família, a religião, a ordem e a propriedade”.
“( …) Contra a Família, a Religião, a Ordem e a Propriedade”. Pode haver algo mais evidente dos propósitos classistas seculares da burguesia e seus acólitos no aparelho do Estado? Vamos encontrá-los ao nos defrontarmos com tais argumentos nos discursos recentes de Bolsonaro e seus pastores, nas ruas, nos “cercadinhos”, e de seus representantes no próprio covil parlamentar, em seu cantochão anticomunista.
Vamos ao grão, então, com resenha resumida de cada um deles, a começar por onde tudo começa, o “Guerra Civil na França”.
Trata-se de texto que, de pronto, deveria, junto com seu antecessor, “18 Brumário”, ser aplicado em Faculdades de Comunicação, como exemplo de precisão factual, comprovante da capacidade do autor, ao marcar posição sobre a narrativa precisa da realidade relatada, sem nunca tentar manipulá-la ou deturpá-la. Tratando o tema com a importância devida em seu devido momento de concretização. Descreve os personagens e mostra as deficiências em deliberações decisivas para a derrota dos Communards, e relatando de forma objetiva, sem adjetivos, o que trouxeram como conquistas marcantes para os segmentos oprimidos da sociedade. Marx não hesita em classificar como erros decisivos duas omissões, numerando-as: a primeira foi a leniência com que os Communards permitiram que Thiers, com a vitória revolucionária de 18 de março de 1871, se escafedesse de Paris para Versalhes, onde passou a operar a Assembleia Nacional contra-revolucionária, eleita em 1970. A segunda, a não investida sobre Versalhes, abrigo ainda desorganizado de Thiers após sua fuga de Paris. A Guarda Nacional, integrada na Comuna, tinha todas as possibilidades de sufocar a contra-revolução na sua origem desordenada, e antes que recebesse a ajuda decisiva dos mais de cem mil prisioneiros da derrota de Sedan, que Bismarck concordou em liberar, após apelo de Thiers, numa lógica que ficava bem retratada na carta de Jules Favre, que Marx assim nos relata: “Numa carta a Gambetta, este mesmíssimo Jules Favre confessa que que estavam se ‘defendendo’, não dos soldados prussianos, mas dos operários de Paris”.

Haja consciência de classe se sobrepondo a qualquer sentimento de Defesa Nacional! Descarada a forma com que esse meliante agente da burguesia entregava a soberania nacional da França, com base na prioridade transnacional de esmagar a Comuna, que se afirmava como fantasma ameaçador para as monarquias vizinhas.
Sobre Thiers, o chefe da contra-revolução que a Comuna deixa se escafeder impunemente, aliás, o autor também não foi menos objetivo: “Thiers, esse gnomo monstruoso, seduziu a burguesia francesa durante cerca de meio século porque é a expressão intelectual mais acabada da sua própria corrupção de classe”.
Mas é em outro equívoco fundamental, em meio à caracterização do caráter libertário da Comuna como o verdadeiro exemplo do que seria a necessária e sempre demonizada Ditadura do Proletariado, que encontramos a liga para falar do magnífico prefácio de Engels, introdutório da reedição de “Guerra Civil na França”, vinte anos depois:
“ (…) Assim se compreende que, no aspecto econômico, não tenha sido feito muito daquilo que, segundo a nossa concepção de hoje, a Comuna tinha de ter feito. O mais difícil de compreender é, certamente, o sagrado respeito com que ficou reverenciosamente parada às portas do Banco de França”
O que se “compreende”, a partir da reflexão de Engels, é que a divisão entre Blaquistas e Proudhonianos – duas forças progressistas, mas com concepções distintas sobre o aparelho do Estado – estava na raiz desse erro político fulcral, que terminou por neutralizar conquistas até hoje insuperáveis na concepção de uma verdadeira democracia social. Os Blanquistas, revolucionários classistas, intuitivos porque sem conhecimento teórico consistente sobre a Economia Política de um novo regime, não se deram conta da importância desse controle sobre as finanças. Conhecimento teórico que os partidários de Proudhon tinham, mas que era orientado pela defesa da manutenção da propriedade privada, ainda que limitada, como controladora dos limites sobre a participação do Estado na condução do governo e das propostas econômicas. Desenhava-se aí o confronto entre os materialistas históricos, pela planificação centralizada, e os anarquistas, já presentes no movimento operário, pela dispersão e estímulo ao já aí abominável “empreendedorismo” de pequenas causas. Pela não ocupação do Banco de França, a Comuna deixou de dar golpe que obrigaria a burguesia a se render a um acordo com a Comuna.
Mas a atualidade de Engels em sua análise vai mais longe, na denúncia da falácia da democracia norte-americana, quando já no século XIX insinuava a conjuntura de partido único se sucedendo em duas vertentes que se alternavam sem pôr em risco os interesses e privilégios das classes dominantes.
Contrapunha a isso a corajosa opção da Comuna pela decomposição do Estado monárquico anterior, com seu Exército substituído por uma Guarda Nacional identificada com consciência proletária. Quanto aos cargos da administração, seriam ocupados por eleição universal, e passíveis de revogação pela base eleitoral, com salários não superiores aos do trabalhador médio.
Encontravam aí, explica Engels, a forma de desestimular arrivistas que pretendessem ocupar o aparelho do Estado para nele se locupletar. Enfim, Engels se debruça sobre conquistas reais a despeito do curto tempo de existência da Comuna.
E, pelo que apresentavam de libertário, tripudiava sobre os que, mesmo na linha reformista, se mantinham na aceitação passiva, ou na defesa mesmo, da ordem burguesa:
“(…) Em que consistia a qualidade característica do Estado, até então? A sociedade tinha criado originalmente os seus órgãos próprios, por simples divisão de trabalho, para cuidar dos seus interesses comuns (…). O filisteu social-democrata caiu recentemente, outra vez, em salutar terror, à palavra: ditadura do proletariado. Ora bem, senhores, quereis saber que rosto tem esta ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado!”
Lênin, chega, enfim, 40 anos depois, com o “Em Memória da Comuna”. Texto curto em relação aos anteriores, mas com qualitativas adições interpretativas. Principalmente pela afirmação, depois da confirmação da importância histórica socialmente ímpar da Comuna: a derrota era inevitável. E aí está o ponto de contato com nossos dias. Porque, para além de considerar não terem ainda se desenvolvido as condições objetivas para a consolidação de um proletariado quantitativamente expressivo, não contavam os Communards com um partido político de perspectiva revolucionária, capaz de centralizar o movimento. Existisse esse partido, Thiers teria se evadido? E Versalhes teria conseguido se reorganizar e buscar a aliança abjeta com o exército ocupante de Bismarck, fator decisivo no massacre genocida da Comuna? Um partido organizado teria sido instrumento decisivo na centralização de ações.
E o que nos cabe, desse aprendizado, após a leitura dos três ensaios?
É fato que, pela primeira vez na história da burguesia e seu regime, vivemos um cenário inédito, não vivido nas realidades dos textos históricos. Um cenário em que o principal sujeito das ressurreições anteriores das esquerdas – o proletariado do chão da fábrica, produto da Primeira Revolução Industrial – vê seus efetivos profundamente reduzidos por conta da Revolução Digital ter se realizado sob a égide do capital privado. Tal hegemonia privada impôs um progresso técnico simultâneo a um imenso retrocesso social. Um avanço tecnológico que poderia, numa sociedade socialista, resultar em expressiva redução de carga horária em quadro de pleno emprego, terminou por nos golpear, na lógica da sociedade burguesa e seu lucro crescente como fator determinante. Instalou-se massivo desemprego estrutural e consequente uberização, terceirização e informalidade para os que foram despejados nas ruas, para além de sobrecarga horária aos que se mantiveram na formalidade. Um cenário em que a solidariedade e consciência de classe fundamentais para a conquista de espaços crescentes é neutralizada pela defesa da manutenção, a qualquer preço de concessões, do emprego garantidor de estabilidade mínima.
Isso traz problemas concretos para a esquerda combativa. Como responder a essa e desagregação da classe trabalhadora? Como resistir às poderosas campanhas midiáticas de apologia do empreendedorismo e do alpinismo social? Como responder aos que insistem em manter as lutas setoriais, por direitos civis (contidos nas pautas identitárias), desligadas da luta anticapitalista pela ampliação dos direitos políticos e sociais, entregando-as às pautas da burguesia liberal, que as mantêm nos limites da ordem vigente do capitalismo?
Essas respostas só podem vir com um forte esforço intelectual da esquerda combativa ainda existente. Esforço para que instituições inseridas na luta anticapitalista, com especial prioridade para os partidos políticos, mergulhem na formulação da teoria revolucionária voltada para essa nova realidade concreta do capitalismo. Uma realidade inédita onde a capitalista transfere para trabalhador explorado o ônus da obtenção e manutenção dos meios de produção, fazendo com que esse ser isolado chegue a se considerar “patrão de si mesmo”, e não um trabalhador sem direito a folgas ou férias remuneradas? Essa é a tarefa a ser destrinchada pelos partidos de esquerda que não se entreguem ao imobilismo da aceitação da “governança possível”.
Se para tanto não houver perspectiva no horizonte existencial, que nos concentremos ao menos em agregar e manter ativos os núcleos orgânicos de esquerda revolucionária, nas legendas em que estiverem, mantendo viva a chama mobilizadora a partir de análises concretas das realidades concretas que se apresentem.
E luta que segue, pois ralar no áspero é nossa sina.
(*) Milton Temer é oficial da Marinha cassado pelo golpe de 1964, jornalista de profissão, ex-deputado federal pelo PT e fundador do PSOL.