“Ao representante do capital não é preciso mais do que 20% dos votos para governar: não tem a burguesia os bancos, os ‘trust’,(…) as estradas de ferro? Tomamos mais acima a relação de força sob o seu aspecto parlamentar. Mas isso é apenas um espelho curvo. A representação parlamentar de uma classe oprimida diminui consideravelmente a sua força real, e, inversamente, a representação da burguesia, mesmo na véspera do seu desmoronamento, é sempre mascarada de sua força imaginária. Só a luta revolucionaria põe a nu a relação real de forças. Na luta direta e imediata pelo poder, o proletariado (…) desenvolve uma força que ultrapassa de muito sua expressão parlamentar.[1]
– TROTSKY, 1979, p.145/6)
O CNE (Conselho Nacional Eleitoral), um órgão subordinado ao governo, anunciou que Maduro venceu as eleições e, no dia seguinte das eleições, formalizou sua diplomação. A oposição de extrema-direita denuncia que teria acontecido uma fraude e anuncia que teria conquistado inverosímeis 70% dos votos. Sendo justo reivindicar ao Conselho Nacional Eleitoral a divulgação do resultado final de 100% dos votos e publicação das atas, o ônus da prova de fraude repousa nas mãos de quem contesta a lisura da apuração. Somente a suspeita não é o bastante. Nenhuma prova categórica foi, até agora, apresentada. Ainda que seja indispensável que todos os dados sejam divulgados, somente a suposição de fraude da campanha de oposição de extrema-direita não deveria, para quem é de esquerda, ser suficiente para adiar, indefinidamente, o reconhecimento da vitória de Maduro.
Não é preciso embelezar o regime, que é autoritário, e reprimiu tanto as forças reacionárias que querem derrubá-lo, quanto silenciou e ilegalizou as correntes de esquerda que se apoiam na classe trabalhadora, para admitir a vitória de Maduro. Ainda que bonapartista, o regime tem base social indiscutível. Ainda que o PSUV seja monolítico, e Nicolás Maduro seja caudilhesco, até meio caricatural, têm implantação social inquestionável. Além disso, é previsível que, em alguma escala, um voto não “madurista”, mas antifascista e anti-imperialista beneficiou Maduro. O país está fraturado social e politicamente. A oposição neofascista tem, também, base social, e arrastou votos anti-maduristas que não são de extrema-direita, e demonstrou nas ruas que tem apoio. Este apoio não deveria nos surpreender, se considerarmos o cerco econômico que estrangulou a Venezuela, em níveis diferentes de intensidade, nos últimos dez anos.
Assim como não é razoável idealizar o regime, não é lúcido romantizar a experiência “chavista” como um processo ininterrupto de construção do “socialismo do século XXI”. O governo Maduro assumiu um projeto de regulação nacionalista estatal do capitalismo com reformas sociais. Nunca se abriu um processo de ruptura capitalista como em Cuba em 1961. A situação social é muito grave, com altos índices de pobreza e desemprego que explicam a emigração de pelo menos 20% da população. O bloqueio imperialista não é o único fator do colapso econômico-social, porque o governo não é inocente diante da desigualdade social crescente, mas é, de forma esmagadora, o mais importante. Antes da eleição de Chávez, em 1998, as condições de vida da maioria do povo eram dramáticas. A Venezuela está hoje na beira do precipício do perigo de uma guerra civil.
A análise do desfecho das eleições não pode se reduzir à consideração ingênuas, strictu sensu, dos procedimentos jurídico-eleitorais. Não podemos esquecer que, mesmo nos países em que os regimes democrático-liberais assumiram as formas mais avançadas, a luta das forças populares enfrenta obstáculos. A força do capital manipula os sufrágios, porque o controle da riqueza facilita o controle do poder. As eleições podem ser mais ou menos livres, mas a expressão da vontade popular sempre é distorcida pela força social, como o domínio dos meios de comunicação, ou a manipulação das redes sociais por robôs, em algum grau. Uma análise marxista deve avaliar qual é a dinâmica político-social do conflito.
A decisão de Maria Corina Machado de tentar impulsionar uma mobilização de massas, desde o fechamento das urnas, com ações violentas e incendiárias para defender a autodeclarada vitória de Edmundo González obedece a uma estratégia golpista que não foi improvisada. Os critérios para caracterizar mobilizações, a bússola marxista, são, esquematicamente, quatro: (a) avaliamos as tarefas político-econômicas que estão colocadas diante da nação, ou seja, o conteúdo histórico-social do programa da mobilização esteja ou não o sujeito social consciente dessas tarefas para satisfazer as suas reivindicações; (b) estudamos quem é o sujeito social, ou seja, as classes ou bloco de classes que se uniu para ir às ruas e protestar; (c) identificamos a direção política das mobilizações, o sujeito político; (d) finalmente, os resultados, isto é, o desenlace do processo.
O programa das mobilizações da oposição de extrema-direita é a derrubada do governo Maduro. Mas não estamos diante de uma “revolução democrática” contra uma tirania. Se Maria Corina e Edmundo González tomarem o poder, a imposição de um regime ditatorial seria inexorável. O que está em disputa é um realinhamento da Venezuela com os EUA, na condição de semicolônia, a privatização da PDVSA e a entrega das maiores reservas de petróleo para as grandes corporações petroleiras, além da prisão das lideranças chavistas e repressão das organizações populares. Um programa contrarrevolucionário. Não deveria nos impressionar se são, mais ou menos massivos. Recordemos as manifestações dos “amarelinhos” no Brasil, entre 2015/16, pela derrubada do governo Dilma Rousseff, denunciando que só a fraude explicaria como, nas eleições de 2014, Aécio Neves foi derrotado. O programa de denúncia de fraude foi esgrimido, também, em 2019, na Bolívia, contra a reeleição de Evo Morales, e serviu de gatilho para o golpe de estado policial-militar. O sujeito social é a burguesia “histórica”, a maioria da classe média mais rica, ainda que nas ruas arrastem setores populares. A direção política é, indubitavelmente, neofascista. Os resultados não podem ser outros que uma derrota histórica para a luta dos trabalhadores e do povo, e a aniquilação da esquerda pelo intervalo de uma geração.
Em resumo, a Venezuela está sendo convulsionada por uma mobilização contrarrevolucionária que tem por objetivo uma derrubada insurrecional do governo Maduro. No dia 29 de julho ocorreram passeatas, ações de grupos derrubaram estátuas de Hugo Chávez, em diferentes localidades e também saques. Na terça-feira, dia 30 de julho, Edmundo González e Maria Corina convocaram uma manifestação no centro de Caracas, e conseguiram reunir dezenas de milhares. O país está profundamente fraturado, social e politicamente. As concentrações, como nos EUA, liderada por Trump, e no Brasil, por Bolsonaro, procuravam subverter o resultado eleitoral. Mas a Venezuela está isolada internacionalmente, porque o governo Maduro defende uma inserção independente. A alternativa na Venezuela não foi nunca entre ditadura ou democracia. Os EUA e a União Europeia foram e são cúmplices de regimes ditatoriais e autoritários em todos os continentes. Mas nunca houve um “ai” de ingerência contra os xeiques na Arábia Saudita, outro grande produtor de petróleo. Mas na Venezuela já tentaram de tudo para derrubar primeiro Chávez e, depois, Maduro. Por quê? Porque querem reduzir o país à condição de semicolônia e ter acesso irrestrito às reservas de petróleo.