“A cem avisa, quem um castiga”
Provérbio popular português
Ao longo dos últimos dez anos, a maioria da esquerda brasileira, com raras excepções tanto entre os moderados quanto os radicais, tem desconsiderado, diminuído ou até desdenhado o perigo que a extrema direita representa. Foi assim desde as jornadas de junho de 2013. A extrema direita ganhou as ruas em 2015, numa avalanche de centenas de milhares embalados pelas denúncias da Lava Jato, e incendiou o país com pelo menos cinco milhões em marchas, em 2016, apoiando o golpe institucional contra Dilma Rousseff. Foram as maiores manifestações de rua desde as Diretas Já de 1984. Desde então, a extrema direita devorou o espaço político que foi ocupado pelo PSDB por vinte anos, entre 1994 e 2014, construiu o movimento político-social mais dinâmico, ativo e influente do país e consagrou a liderança de Bolsonaro. A força social de choque neofascista foi de tal impacto que impôs derrotas ininterruptas entre 2016 e 2022, invertendo a relação social entre as classes contra os trabalhadores e oprimidos, e a relação política de forças entre os partidos e movimentos. Estamos em uma defensiva em toda linha, inclusive, ideologicamente. A campanha “Não vai ter golpe” não foi assumida diretamente pelo governo, e o PT e seus aliados só convocaram as massas às ruas quando já era tarde demais. O balanço da maioria da esquerda radical, à exceção de Boulos do MTST, foi ainda pior. Localizada como oposição de esquerda ao governo de coalizão liderado por Dilma Rousseff, que estava aplicando uma estratégia de austeridade e choque fiscal implementada por Joaquim Levy, um ministro da Fazenda de confiança do mercado, nem sequer aderiu à resistência contra o golpe, aprisionada na miopia de uma tática “Nem, nem”, uma neutralidade obtusa diante do perigo.
Consumado o golpe que uniu todas as frações da classe dominante atrás da liderança de Eduardo Cunha do MDB e do “vampiresco” vice-presidente Michel Temer, não fosse o bastante a fúria reacionária para aprovar a reforma trabalhista, a maioria da esquerda não compreendeu que a prisão de Lula era iminente. Preso Lula, uma parcela importante não se comprometeu com a campanha Lula Livre. Diante da candidatura de Bolsonaro em 2018, não avaliou que ele era o inimigo principal, e não percebeu que, depois do episódio da facada, era o candidato favorito. Depois do impacto, especialmente, devastador da pandemia no Brasil, a esquerda moderada, liderada pelo PT, não se engajou numa campanha de agitação para construir um movimento que desse sustentação ao impeachment, e apostou no “quietismo” de um desgaste ininterrupto que abriria condições para uma vitória eleitoral de Lula. Desconheceu que o governo Bolsonaro tinha duas táticas: disputar a eleição e, simultaneamente, preparar um golpe se perdesse.
Depois da derrota da semi-insurreição de janeiro de 2023, o governo Lula não aproveitou a oportunidade para uma contraofensiva de mobilização de massas para conquistar uma maioria social, isolando a extrema-direita. Ao contrário, a apatia que terceirizou para a Justiça todas as responsabilidades abriu caminho para Bolsonaro construir uma avalanche de centenas de milhares na Paulista e Copacabana exigindo anistia para si mesmo e seus cúmplices. Durante a recente campanha eleitoral nos municípios as candidaturas da extrema-direita foram normalizadas como “legítimas” pela mídia liberal e pelos Tribunais, apesar de defenderem, impunemente, as maiores barbaridades e saíram muito fortalecidas. Mas nossa derrota não foi suficiente para acender um alerta vermelho. Não foi o bastante para o governo Lula apertar o botão de alarme, e interromper a negociação de um plano de ajuste de austeridade, consciente que de que não serão concessões às frações mais reacionárias da classe dominante que irão afastar, por exemplo, o agronegócio da extrema-direita. Eles irão sempre exigir muito mais: querem o fim dos pisos constitucionais para educação e saúde agora e já. Nas últimas duas semanas o relatório divulgado pela Polícia Federal informou que a preparação do golpe incluía o inacreditável e insano plano de assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. Mas esta espantosa revelação não impediu que uma parcela da esquerda se posicione criticamente à exigência de “Prisão para Bolsonaro”, mesmo depois da vitória de Trump, o que sinaliza o perigo que nos ameaça em 2026. Resumo da ópera: enquanto o PT abraçou a ampliação de alianças com o Centrão e Lira para garantir a governabilidade, uma parcela da esquerda radical decidiu que o caminho seria se declarar oposição ao governo Lula. Esta desvalorização geral se expressou até na dificuldade em aceitar que o bolsonarismo é uma corrente neofascista, caracterização que não deveria se restringir ao debate teórico-histórico de interesse de especialistas.
Esta teimosia em desconsiderar o perigo neofascista, e a ameaça de uma derrota histórica que deixará sequelas por décadas, merece uma explicação. Um “negacionismo” tão complexo não se entende sem considerar muitos argumentos. Pelo menos cinco merecem destaque: (a) vivemos no Brasil, desde o final dos anos oitenta, um inusitado período de trinta e cinco anos de estabilidade do regime democrático-liberal, e esta longevidade alimenta uma ilusão de ótica, diminuindo o significado do golpe de 2016, e transferindo para o STF o papel de guardião das liberdades democráticas; (b) a extrema-direita não é toda neofascista e uma parcela tem uma retórica tão radical quanto os neofascistas, mas é uma corrente eleitoral, ou mostra os dentes e não morde, esquecendo que quem dirige arrasta, e o bolsonarismo é quem lidera; (c) Bolsonaro governou durante quatro anos e não conseguiu subverter o regime, portanto, os pesos e contrapesos das instituições teriam confirmado ser fortes o bastante, desconhecendo que o governo de Biden nos EUA foi contra o projeto golpista; (d) o medo de um processo de radicalização que precipite no Brasil uma situação de confronto como na Venezuela alimenta a ilusão de que uma tática de “não provocar”, renunciando à mobilização de massas e despolitizando o combate ao bolsonarismo, seja a melhor; (e) por último, mas não menos grave, a insistência estratégica do governo Lula em manter o tripé neoliberal intacto – déficit zero, inflação regulada pelo contracionismo de uma taxa de juros elevada, e câmbio flutuante – alimenta a miopia que desvaloriza as diferenças abismais entre o governo Lula e o governo Bolsonaro, o que resulta na subestimação do perigo neofascista.
Um tema de importância tão central, como o lugar da tática para derrotar o bolsonarismo na estratégia da esquerda, não pode ser reduzido a uma luta de ideias. Os argumentos são importantes, evidentemente. Mas as ideias não “governam” o mundo. A esquerda dá muita importância, com razão, às avaliações sobre a conjuntura, ou sobre a correlação de forças entre as classes, sobre a melhor linha. Uma avaliação marxista sobre estas polêmicas políticas não pode dispensar uma avaliação das pressões sociais que se exercem, poderosamente, sobre toda a esquerda. A política é o terreno da luta pelo poder. O que define o sentido da luta política é a defesa de interesses de classe. Tanta dificuldade só pode se compreender porque pressões sociais hostis são muito fortes. A adaptação dos partidos mais moderados às instituições do regime liberal ajudam a entender o quietismo. A marginalidade social da esquerda radical explica o voluntarismo. Em uma situação internacional tão desfavorável para a luta dos trabalhadores e oprimidos, uma geração depois da restauração capitalista, derrotada a dinâmica revolucionária que atravessou a América do Sul entre 1999/2005 e o mundo árabe entre 2010/12, a perspectiva anticapitalista é menos convincente. E o que ganha influência é a extrema-direita, com uma mudança qualitativa como foi a eleição de Trump. A angústia é o preço da lucidez. Mas é possível derrotá-los. Tudo depende de nós. Sem anistia, prisão para todos os golpistas, prisão para Bolsonaro.