A esquerda radical está dividida. Por quê?
As revelações da Polícia Federal sobre a conspiração golpista articulada por Bolsonaro com uma parcela da alta oficialidade militar abriram uma oportunidade tática
“Para o marxista, a discussão é uma arma importante, mas funcional da luta de classes. Para o sectário, a discussão é um fim em si mesmo(…) É como um homem que sacia sua sede com água salgada: quanto mais bebe, mais aumenta sua sede. Por isso, sua irritação constante (…) Para o sectário, todo aquele que trata de lhe explicar que a participação ativa no movimento operário exige o estudo permanente da situação objetiva no lugar dos conselhos altaneiros pronunciados desde a tribuna professoral sectária, é um inimigo. Em lugar de dedicar-se a analisar a realidade, o sectário se dedica a intrigas, rumores e histeria.”
– Leon Trotsky
Há muitas razões para a divisão da esquerda. A principal delas é que há diferenças de estratégia. Estratégia é um assunto muito sério. Estratégia e tática são conceitos relativos: os fins e os meios. Marxistas têm como estratégia programática a luta pela revolução, ou seja, pelo governo dos trabalhadores que desenvolva um programa anticapitalista. Mas esta clareza não basta: é necessária, também, uma estratégia política que seja uma mediação que corresponda à relação de forças social entre as classes. Estratégia política é o horizonte político que perseguimos no marco de uma situação. As táticas devem estar subordinadas a esta estratégia. E tem mais: estratégia não é algo que se muda todos os dias. Pode e deve mudar, claro, mas somente diante de grandes mudanças da situação. Então, é muito importante saber quais são as diferenças de estratégia que dividem a esquerda brasileira.
Há três estratégias hoje na esquerda brasileira. Mas o debate não é claro porque as três correntes, subdivididas cada uma delas em muitas tendências, reconhecem, formalmente, que a linha mais justa é a estratégia de derrotar o neofascismo que ameaça voltar ao poder. Só que não. A discussão só fica mais clara quando se confere em que medida as posições táticas são ou não coerentes. A corrente mais influente e moderada argumenta que o caminho para derrotar o bolsonarismo é apoiar, incondicionalmente, o governo Lula 3 e sua tática de aliança com o centrão para preservar a governabilidade insistindo em manter o tripé neoliberal exigido pela classe dominante. Do que decorre o arcabouço do ano passado e o ajuste fiscal deste fim de ano. Acontece que esta linha não está diminuindo a influência da extrema-direita. Como aprendemos de forma amarga nas derrotas recentes nas eleições municipais de 2024. Já uma parte mais extremista da esquerda anticapitalista defende a necessidade de construir uma oposição de esquerda ao governo Lula, e enfrentar o bolsonarismo com um programa antissistêmico. Mas, dois anos depois da vitória de Lula em 2022, tem se demonstrado incontornável que não é possível derrotar os neofascistas sem Lula. Finalmente, estamos aqueles na esquerda radical que consideramos impossível derrotar a extrema-direita sem o PT e, portanto, defendemos uma Frente de Esquerda e a unidade de ação com todos, inclusive com frações burguesas presentes no STF, como Alexandre de Moraes, preservando uma necessária independência em relação ao governo Lula.
O padrão ultra-esquerdista mais clássico tem sido nos últimos vinte anos a defesa da consigna “Abaixo o governo”, sem fazer o cálculo de quem é a principal força de oposição. Foi assim desde 2016 com a fórmula Fora Todos que, objetivamente, era igual a Fora Dilma. Nesta chave não importa muito quem vai assumir o poder. Se a denúncia ininterrupta do governo é a prioridade, não faz diferença se a palavra de ordem mais justa era nos últimos dois anos Fora Haddad ou Fora Campos Neto. A questão estratégica é que não é possível lutar, simultaneamente, em pé de igualdade contra as medidas reacionários do governo Lula 3, e contra o bolsonarismo, a não ser no papel. Idealização da disposição de luta das grandes massas, quando a situação é superdefensiva, análises catastrofistas sobre o destino do governo Lula 3, desespero de iniciativas paralelas ou ações exemplares, voluntarismo substitucionista são um repertório clássico do ultra esquerdismo. Nunca deu certo. A defesa de propostas que as massas não estão dispostas a fazer é ultimatismo. A política marxista não proclama, declara ou anuncia ultimatos aos trabalhadores e a juventude. Ela estabelece um diálogo. Apresenta um programa de ação que pode abrir o caminho para a vitória, e se apoia no aumento da confiança das massas em si mesmas.
Derrotas históricas têm consequências sociais devastadoras, mas, também, ideológicas. A narrativa liberal que nivela as ditaduras burguesas com os regimes de partido único como Cuba, ou com governos independentes cercados pelo imperialismo como a Venezuela passou a ser hegemônica, diminuindo a influência do projeto socialista. Trata-se de uma falsificação histórica grotesca. Mas exerce muita pressão sobre a nova geração sobre diferentes formas. Na etapa histórica aberta pela restauração capitalista, ideias de inspiração anarquista, mas com vocabulário marxista voltaram a ter influência na juventude. A imensa fragmentação na esquerda revolucionária facilita esta dinâmica. Vitórias revolucionárias incendiam esperanças militantes, renovação teórica e unificações políticas. Derrotas alimentam nomadismos ecléticos de partidos, dispersão teórica do marxismo, e diásporas sociais na intelectualidade. A linha divisória entre os dois grandes campos, reforma e revolução, não esgotou, no entanto, as identidades políticas na esquerda de inspiração marxista e base na classe trabalhadora. O ultra esquerdismo procurou consistência em um programa. Caracteriza-se por uma perspectiva substitucionista: coloca para os trabalhadores e a juventude projetos, reivindicações ou ações que estes, em sua maioria, não identificam ainda como os seus, antecipando-se à experiência do grosso da classe. As políticas ultras subestimam as forças reacionárias e os obstáculos à mobilização e organização dos trabalhadores. Mas, o seu afã voluntarista exige uma forte identidade e coesão interna. Os sectários desprezam a importância, em cada situação, da política que pode, efetivamente, colocar em movimento as amplas massas, secundarizando o terreno da Frente Única. Sobre-estimam a sua influência, e subestimaram a dos outros.

(Foto: José Cruz/Agência Brasil)
As incríveis revelações da investigação da Polícia Federal sobre a conspiração golpista articulada por Bolsonaro com uma parcela da alta oficialidade militar abriu uma oportunidade tática. A luta sob a bandeira sem anistia, punição para os golpistas e Bolsonaro na cadeia ganhou nova relevância. A primeira conclusão lúcida é a compreensão de que o perigo neofascista ainda permanece vigente, porque a cúpula das Forças Armadas está intacta, e ninguém pode prever o desenlace das eleições de 2026. Mas não é menos importante que a divisão burguesa diante do destino dos neofascistas abre a possibilidade de que o julgamento dos golpistas leve alguns generais para a prisão. Devemos aprender com as lições do passado. Em três ocasiões, nos últimos quarenta anos, a história deu um pequeno salto para a frente: (a) quando das Diretas em 1984, a iniciativa pioneira do PT com o comício de novembro em São Paulo acendeu um rastilho que culminou com mais de cinco milhões nas ruas em noventa dias e a ditadura acabou, embora não tenha sido derrubada; (b) o Fora Collor em 1992 foi liderado pela UNE, apesar da descrença de quase toda a esquerda, mas a precipitação da divisão burguesa e a presença de milhões nas ruas em 45 dias incendiou o país e forçou a renúncia; (c) a estreita eleição de Lula em 2022 foi potencializada pela campanha Fora Bolsonaro, mas a divisão burguesa em função da catástrofe sanitária foi também decisiva. Existem dificuldades no caminho de uma campanha sem anistia, mas ela deveria ser o centro da tática de toda a esquerda.
(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
