Quinta-feira, 3 de julho de 2025
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Com o avanço das tecnologias digitais sobre todas as esferas da vida, as abstrações algorítmicas passam a integrar desde as órbitas de satélites artificiais que servem de infraestrutura para a rede de informação global, passando pelos cálculos de tecnologias de defesa para interceptação de ataques aéreos, chegando até à curadoria de conteúdos que nos alcançam em nossas telas de bolso, integradas na grande rede global. Vale notar: cada vez mais as dimensões abstratas e concretas que dão forma à digitalização passam a integrar desde a vida cotidiana até os próprios conflitos bélicos. 

Quando consideramos a situação atual, com a guerra imposta pelo regime sionista em sua ocupação da Palestina e, mais recentemente, seus ataques ao Irã – que parecem ter a finalidade de forçar um envolvimento direto dos EUA no conflito –, vemos um exemplo central da convergência digital entre diversas esferas sociais, culturais e políticas. O que há de comum entre o chamado “Domo de Ferro” e a nova propaganda de guerra é o seguinte: se o primeiro representa a automação na defesa do espaço aéreo de Israel, a nova propaganda de guerra também é automatizada – agora pela curadoria digital de informações e conteúdos, tratando usuários como alvos individualizados de textos, imagens e sons, o que acaba gerando uma espécie de segmentação informacional inédita que é, paradoxalmente, personalizada e massificada, direcionada e homogeneizante, levando ao que corriqueiramente se descreve como a dinâmica de “bolhas digitais”.

São Paulo (SP), 28/09/2024 - Palestinos fazem manifestação na avenida paulista contra os ataques ao Líbano. (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)
São Paulo (SP), 28/09/2024 – Palestinos fazem manifestação na avenida paulista contra os ataques ao Líbano.
(Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

No contexto das informações, conteúdos e propagandas de guerra, percebemos a tendência de segmentação dos discursos desde as famosas “caixas de comentário”. Vale ressaltar que a noção de propaganda de guerra precisa ser reconsiderada quando pensamos nas mídias digitais: primeiro, porque a propaganda de guerra hoje não é exatamente a mesma que a do século passado, apesar de haver muitas semelhanças e continuidades; além disso, é fundamental termos em mente que a linguagem da propaganda dominou todo o conteúdo das mídias digitais. Isso não quer dizer que tudo se resume na organização desses espaços para a propaganda de mercadorias estritamente – ainda que este seja um aspecto fundamental. Afirmar que ‘tudo é propaganda’ não significa um sentido literal, mas quer dizer que, direta ou indiretamente, que tudo se articula pela linguagem do marketing

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Essa linguagem estrutura todo um universo simbólico e imaginário a partir das mídias que hoje, cada vez mais, funcionam e apresentam uma nova temporalidade das notícias e informações em geral – temporalidade essa que corresponde à aceleração da economia política, expressando-se cada vez mais em uma cultura do tempo real. Não é diferente quando se tratam de conflitos bélicos: entramos na era da transmissão em tempo real das guerras desde as mídias digitais, onde a devastação e a violência destruidora das incursões militares se refletem em conteúdos praticamente instantâneos, até mesmo transmitidos ao vivo, que por muitas vezes desafiam as narrativas hegemônicas, mas são também frequentemente boicotados de diversas formas, na medida em que circulam através de plataformas controladas mundialmente por oligopólios (por exemplo, com o chamado shadowban, quando usuários ou postagens têm seu alcance reduzido sem qualquer notificação). 

Outra forma de boicote ou censura que ocorre, de modo mais sutil – poderíamos considerá-la inclusive sistêmica, estrutural ou formativa – é aquela que condiciona e induz o tipo de conteúdo (e sua forma) a ser produzido e entregue nas mídias digitais (os formatos de postagem que geram engajamento, com seus jargões, estímulos e apelos padronizados, etc). A produção dessa estereotipia implica na redução das complexidades e no abuso de maniqueísmos: perdem-se nuances e minúcias, detalhes e pormenores. Conflitos militares tornam-se assuntos extremamente explorados pelo seu potencial de engajamento, na medida em que servem para reproduzir as dinâmicas de ‘nós VS eles’, ou seja, uma visão maniqueísta e redutiva da realidade que acaba por retroalimentar uma percepção moralizante dos debates. Foi assim, por exemplo, no caso entre Rússia e Ucrânia; também é com Israel e Irã. Se Walter Benjamin alertava para os perigos de uma estetização da política, com as mídias digitais nós temos não apenas uma aceleração desse processo, como uma automatização do mesmo; além disso, encontramos agora uma estetização das guerras em tempo real. 

Os múltiplos vídeos dos bombardeios iniciados por Israel contra o Irã e as respostas iranianas subsequentes inundaram as redes sociais e, junto das constantes postagens abordando o tema, feitas por especialistas ou pseudo-especialistas sobre o assunto, foram acompanhadas por comentários que, com alguma frequência, ou comemoram as ações de algum dos lados, buscando uma espécie de justiça ou redenção poética; ou pedem de forma abstrata por uma benção e ajuda divina. Na medida em que acompanhamos a estetização do genocídio palestino nas redes, agora vemos a estetização da guerra que espetaculariza o contra-ataque iraniano enquanto explora o potencial de engajamento viral do conflito. 

Para a propaganda sionista, isso serve à chamada “teoria do dia seguinte”, onde, por um passe de mágica, o conflito tem início sempre em um marco conveniente para a narrativa de Israel: seja no contra-ataque iraniano, seja no 7 de outubro de 2023, a narrativa é construída como se os colonos israelenses estivessem lá desde sempre. Evidentemente, soma-se a isso a postura conveniente e covarde de Estados como a Alemanha, os EUA e, obviamente, tantos outros europeus, que corroboram com suas posturas e declarações as ações de Israel – de modo coerente com os seus apoios políticos, econômicos e militares. 

Nos espaços virtuais, especificamente aqueles chamados de “redes sociais”, o alcance das informações é condicionado, como já dissemos, pelo seu potencial viral. Esse potencial é mediado pela estetização que ganha forma em memes, jargões, estereotipias e fórmulas fáceis que seguem as tendências em voga na economia informacional das mídias digitais. Se a guerra é a política por outros meios, e a estruturação do fascismo perpassa pela estetização da política, hoje encontramos de forma radical a estetização das guerras pelas mídias digitais como uma forma fundamental da antipolítica fascista. Isso se estende desde as incursões do Estado brasileiro nas favelas e periferias do país, até os conflitos no Oriente Médio, especificamente aqueles protagonizados pelo Estado colonial sionista. 

A estetização da política – e da guerra – como efeito da digitalização irremediavelmente surte a intensificação de dinâmicas identitárias, levando à retroalimentação do racismo, seja ele islamofóbico ou antisionista. A grande questão que enfrenta-se agora é em que medida o campo progressista, especialmente aquele à esquerda, conseguirá se posicionar em uma desambiguação entre anti-sionismo e antissemitismo, ao mesmo tempo em que não manifeste-se de maneira ingênua frente às dinâmicas de rede que se apresentam cada vez mais naturalizadas, de modo opaco, ditando os modos de expressão e disputa pelo engajamento reativo. O desafio aqui é justamente não se encantar nem se precipitar no tipo de “disputa” que a digitalização impõe: é fundamental receber – e perceber – de forma crítica e não imediatista aquilo que se apresenta como se fosse incontornável, enquanto forma e conteúdo, no discurso digital. 

(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos livres.