Nas universidades brasileiras e de vários países chamados “ocidentais”, tornou-se moda falar em um “reducionismo de classe” do marxismo. A ideia básica é que o marxismo reduziria todos os fenômenos sociais ao pertencimento de classe – e às contradições entre as classes –, desconsiderando outros fenômenos e relações do tecido social. De fato, alguns marxistas já incorreram bastante em um reducionismo de classe e em uma relação mecânica entre classe e consciência de classe – como se cada trabalhador, tomado individualmente, fosse um bolchevique em potencial, com a consciência revolucionária pronta a despertar a qualquer momento, dado seu pertencimento de classe. Contudo, no Brasil de hoje, neste 2025 que começa, o nosso problema central nos debates teóricos e políticos não é um suposto reducionismo de classe do marxismo, mas o esquecimento total de que existem classes sociais no Brasil. Um trágico exemplo disso são os debates sobre democracia, defesa das “instituições” e frente ampla. Tudo começa com um engano autoimposto. O candidato Lula, em 2022, não aglutinou em torno de si milhões de votos de trabalhadores que ganham até dois salários mínimos (especialmente na região Nordeste, mas não só) por causa da defesa da democracia contra o autoritarismo de Jair Bolsonaro. O apelo de Lula foi a lembrança de um período econômico em que os salários, o poder de compra e o consumo das famílias eram melhores do que no governo Bolsonaro, e o custo de vida, como o preço da gasolina, do gás de cozinha, dos alimentos e afins, era bem menor.
É óbvio que, para amplos setores da sociedade, frente ao genocídio cometido na pandemia, a questão democrática e o horror ao bolsonarismo foram fatores de atração de votos em Lula. Mas engana-se quem coloca esse fator como elemento central do potencial de votos da Frente Ampla liderada por Lula. Com o governo empossado, a aposta foi simples: isolar o bolsonarismo, mostrando para os diversos setores da burguesia que não era necessário um movimento/governo de extrema-direita para entregar seu programa econômico. Vastos setores do progressismo, inclusive a tendência majoritária do PSOL, liderada por Guilherme Boulos, concordaram com essa premissa: ser funcional para a classe dominante, tornando o bolsonarismo uma força política e eleitoral desnecessária.

(Foto: Ricardo Stuckert / Lula Oficial)
Dessa premissa, adotada por praticamente todos os progressistas, embora não dita abertamente, decorrem consequências básicas. Esquecer todas as promessas de campanha de 2022: revogar as contrarreformas trabalhista, previdenciária e do ensino médio, acabar com o teto de gastos, abrasileirar o preço dos combustíveis e retomar as refinarias privatizadas etc. A segunda consequência é continuar, ainda que com um ritmo menos violento, a Ponte para o Futuro, apresentada e posta em prática por Michel Temer no contexto do golpe de 2016 e, a partir de 2019, gerida por Paulo Guedes/Jair Bolsonaro.
Neste quadro, além de tratar números tímidos de melhora como uma espécie de paraíso na Terra, temos cada vez mais uma cortina de mentiras e enganos autoimpostos sobre a forma de tocar a “questão democrática” no âmbito da Frente Ampla. Primeiro, como já falamos, a estória de que, em 2022, a unidade contra o autoritarismo é que foi o fundamental. Em segundo lugar, a tese de que “a economia” não importa mais na definição da avaliação de um governo ou no ânimo do povo trabalhador, e que agora o centro da questão é a “guerra cultural” e as “fake news”. E, por fim, a nova moda da praça: a “tese” de que o governo Lula vai muito bem na economia, mas o povo não o percebe por problemas na comunicação.
Aqui, senhoras e senhores, permitam-me uma consideração que alguns podem achar um “reducionismo de classe”. Todos esses mitos têm uma função teórica clara (além dos objetivos eleitorais de blindar o governo): reforçar um programa pequeno-burguês de orientação sobre a classe trabalhadora. Um programa no qual nossa classe deve abrir mão de defender seus interesses econômicos imediatos (salário, direitos trabalhistas e sociais, condições de trabalho etc.) e subordinar-se a uma tática em que a “defesa da democracia” é feita às suas custas, unindo, com bênçãos liberais, a grande burguesia brasileira, os monopólios estrangeiros, os setores das camadas médias e os grupos sociais de maior renda que, desfrutando de várias franquias do Estado Democrático de Direito, têm interesse objetivo imediato em defendê-lo.
É uma noção de democracia sem povo, sem conflito capital/trabalho, sem luta de classes. Com esse horizonte de mundo, é totalmente coerente tratar o Supremo Tribunal Federal (STF) e Alexandre de Moraes (“Xandão”) como heróis da democracia, ao mesmo tempo em que o STF e “Xandão” estão numa saga para destruir todos os direitos trabalhistas do País (e a Justiça do Trabalho). O Supremo, a maioria dos democratas e defensores da democracia e a extrema-direita concordam com os pontos centrais do programa neoliberal em curso – incluso, é claro, a destruição dos direitos trabalhistas. É a democracia sem povo. Um museu de grandes novidades. De forma que em breve algum grande frasista – Alexandre de Moraes, Fernando Haddad ou Bolsonaro – poderá dizer: “a questão social é caso de polícia” e terminar com um “viva a democracia”.