Na antiguidade, quando as cidades-Estado da Grécia disputavam os Jogos na cidade de Olímpia, dizia-se que as guerras eram interrompidas. Um exagero, sem dúvida, pois como hoje se sabe, nem sempre isso acontecia, e muitas vezes os Jogos eram uma ocasião de tramoias e conspirações entre as cidades. Os Jogos Olímpicos, em sua edição recém-encerrada em Paris, não suspenderam guerra alguma, talvez só a democracia francesa.
Enquanto se vangloriava dos valores cosmopolitas e liberais, o presidente francês Emmanuel Macron seguiu sem reconhecer o resultado das eleições parlamentares, que ele mesmo convocou extemporaneamente – e perdeu. Assim, a França segue sem um gabinete de ministros regular, com o anterior ainda no poder, governando por decreto. Macron ganha todo o tempo possível para, certamente, convocar novas eleições no ano que vem.
No quadro geral de 2024, apenas onze países conseguiram chegar ao patamar de dez medalhas de ouro, todos eles ricos, com exceção da China, única nação emergente no clube de potências olímpicas. A Rússia, que poderia facilmente figurar no seleto grupo, foi excluída em razão da guerra contra a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que se usa da Ucrânia como títere e faz daquele país o campo de batalha.
Na esteira de mais curiosas ironias, Israel disputou tranquilamente os jogos parisienses, a despeito de estar promovendo um morticínio, transmitido ao vivo, contra a população civil da Faixa de Gaza, na Palestina. Anos atrás, sem entrar no mérito de causas e razões, os Estados Unidos disputaram livremente as Olímpiadas, apesar da invasão do Afeganistão e do Iraque, com suas tantas vítimas civis.
Ainda que houvesse precedentes estratégicos nas Olímpiadas do mundo antigo, a falta de critérios para exclusões e inclusões diz mais respeito a Tucídides, na História da Guerra do Peloponeso, do que ao esporte antigo. É o velho diálogo meliano, segundo o qual os fortes fazem o que podem, e os fracos fazem o que devem. O G7 dita sedes a excluídos e incluídos, mas também domina os pódios. Nem sempre foi assim, entretanto.
Era uma vez o projeto olímpico socialista
Em 1992, nas Olimpíadas de Barcelona, a antiga União Soviética já não existia mais, mas seu time olímpico competiu unido, pois não havia tempo nem condições de que cada novo país enviasse sua própria delegação – e as vagas já haviam sido decididas em um ciclo olímpico no qual a União Soviética existiu na maior parte do tempo. Aquele time olímpico fantasma, a Equipe Unificada, ironicamente, derrotou os Estados Unidos.
Quatro anos antes, nas Olimpíadas de Seul, seis dos onze países mais bem colocados no quadro de medalhas eram socialistas. A União Soviética, como de costume, ocupou o topo, seguida pela Alemanha Oriental e só aí os Estados Unidos. Os soviéticos, por sinal, bateram o recorde de medalhas de ouro e do total de medalhas de todos os tempos. Países como Bulgária e Hungria figuraram entre os melhores, algo impensável hoje.
Liberais denunciavam que os países socialistas faziam propaganda nas Olimpíadas. Mas o fato é que eles venciam legitimamente. Tornando o esporte um fenômeno de massas, entrelaçando-o com as redes de educação e saúde, e investindo no alto rendimento, apesar da crise que o campo socialista enfrentava nos anos 1980, ele vivia o ápice do desempenho olímpico.
Havia algo de verdade na narrativa amarga e maledicente dos liberais contra os triunfos socialistas, uma vez que os governos vermelhos, de fato, apostavam nas Olímpiadas para mostrar ao mundo – e para seu público doméstico – que as coisas iam bem. Verdade seja dita, o sonho de igualar e ultrapassar os países capitalistas só aconteceu mesmo no esporte, mas esse fato também não pode ser desprezado.
A questão não é que o socialismo real só alcançou o topo no esporte, mas, ao contrário, que ele se mostrou possível ali e não como propaganda, mas como resultado efetivo e decorrência de uma intensa mobilização e organização social. O topo só era possível porque, antes, havia uma base real nas escolas, universidades e na sociedade de um modo geral, o que contribuia com a medicina preventiva em termos de massas.
A ilusão da conversão ao capitalismo tampouco sanou os problemas do leste europeu ou da antiga União Soviética, muitíssimo pelo contrário, e o esporte olímpico, antes referência, desabou naquela parte do mundo – salvo o caso russo, que se conservou uma potência olímpica até ser submetida a baterias diferentes de exclusão, primeiro sob uma alegação de rocambolesca de doping em Tóquio 2021 e, agora, por causa da guerra na Ucrânia.
As Olimpíadas hoje e amanhã
Dominando recursos financeiros e com o domínio da ponta da tecnologia, os países capitalistas centrais recuperaram o protagonismo olímpico perdido nos anos 1960. Mas também exercem um incontestável domínio político. Atletas russos e chineses são, a título de exemplo, muito mais testados para doping do que americanos, apesar de, comparativamente, apresentarem menos casos.
O recente escândalo de que a agência americana antidoping, conscientemente, permitiu que atletas flagrados em exames competissem – e ela mesma admitiu isso e protestou, de forma surreal, contra a agência mundial antidoping – dá o tom da disputa. Não se discutirá, nem que os Estados Unidos enviem o dobro de armas para Israel massacrar civis palestinos, qualquer forma de exclusão do país, que inclusive sediará a próxima edição dos Jogos.
Em um momento em que a periferia global busca se organizar em blocos, se articular em organismos multilaterais ou, até mesmo, escapar à hegemonia do dólar, o esporte contrasta mais uma vez com a realidade, desta vez com o domínio do Ocidente – e de seus aliados orientais, como Japão e Coreia do Sul – sobre o que é a verdade e o direito em matéria olímpica, tendo assim enorme vantagem na disputa.
Novamente, o único cisne negro nessa disputa é um país socialista, a China, que consegue mostrar uma alta eficiência entre seus recursos materiais e o número de medalhas. O mesmo se verificou no combate à Covid-19 ou no combate à fome e à pobreza. Então, esses números não são um acaso, embora não se repitam entre os países socialistas ainda existentes, mesmo Cuba, que um dia foi uma potência olímpica.
A dificuldade de reproduzir o modelo chinês, e a própria estratégia de Pequim de não construir um novo campo socialista, mas sim um bloco heterogêneo de países do Sul Global, fazem diferença nesse sentido. De todo modo, maior economia em termos reais, mas segunda maior população, os chineses com um PIB per capita mediano disputam vis-à-vis com um potência três ou quatro vezes mais rica.
A doce e derradeira ironia é que em um momento em que enfrentam desafios existenciais, as nações centrais mais conquistam resultados olímpicos. Uma possível vitória americana nos Jogos de Los Angeles, daqui a quatro anos, poderá esconder um canto do cisne do país – e uma derrota será o fim da linha. Isto é, se o mundo ainda conseguir se reunir para, mesmo que precariamente, disputar os Jogos Olímpicos de 2028.
O passado recente mostra, no entanto, que o socialismo foi, pelo menos em algum sentido, um farol possível para nações inteiras se desenvolverem. Seu fim, em boa parte do mundo, tampouco trouxe mais prosperidade ou segurança para seus desertores. A assimetria de recursos e de poder nas Olímpiadas expõe isso. Aguardemos por 2028 e, até lá, esperemos que Macron pelo menos reconheça a sua derrota eleitoral e tenha nomeado um novo governo.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.