A coluna de hoje começa pelo fim. É que, enquanto a escrevia, deparei-me com esse artigo, assinado por ninguém menos que Robert F. Kennedy Jr. e Donald Trump Jr.
Uma situação embaraçosa
O artigo dos dois quadros da extrema-direita dos EUA termina exatamente como eu pretendia finalizar a coluna: criticando os falcões à frente do Departamento de Estado dos EUA que conduzem o mundo, a passos largos, para um conflito nuclear. É uma situação embaraçosa, de fato. No entanto, não é preciso ser uma crítica do imperialismo para chegar à conclusão de que os fatos que envolvem a OTAN, a Ucrânia e a Rússia chegaram a um perigoso limite.
O tema
Na última sexta-feira (13), Vladimir Putin deu uma entrevista em que reagia ao anúncio, por países integrantes da OTAN (em especial Inglaterra e EUA), de que estudava-se autorizar o uso, pela Ucrânia, de mísseis de longo alcance com capacidade de atingir o território russo para além das regiões de fronteira. A declaração foi curta e direta. Em síntese, o líder russo disse que não se trata de “autorizar” a Ucrânia a atacar a Rússia. Os ucranianos já fazem isso, utilizando-se de drones. Trata-se de envolvimento direto na guerra, uma vez que a Ucrânia não possui capacidade de operar esse tipo de míssil. Se eles forem usados, isso só poderá ocorrer com o envolvimento direto da OTAN, cujos países membros são os proprietários e os operadores dos satélites necessários ao seu funcionamento. Então não se trata de “autorização”. Trata-se da operação direta dos armamentos e equipamentos utilizados para a atingir a Rússia e, portanto, envolvimento na guerra.
Diante disso, a Rússia passaria, portanto, a tratar os países como parte do conflito – o que implica, obviamente, em respostas aos ataques com mísseis de longo alcance. Nunca é demais lembrar que a Rússia tem o maior estoque de ogivas nucleares do mundo, além de modernos mísseis – balísticos, hipersônicos, intercontinentais e cruzeiro – com capacidade de atingir qualquer país na Europa e a América do Norte. Essa capacidade militar é o maior trunfo do país no que toca à sua capacidade de resistir às pressões do chamado ocidente, por seu poder dissuasório.
Os governos dos EUA e a Inglaterra, no entanto, seguem com a aposta em um “blefe” de Putin, e ao longo desta semana não se noticiou qualquer movimento no sentido da distensão. Pelo contrário: as tratativas no âmbito da OTAN seguem em curso, e nenhum dos governos envolvidos realizou qualquer movimento no sentido do entendimento com o país euroasiático. Ao mesmo tempo, está em curso nas mídias hegemônicas uma operação de falseamento da realidade: nada se fala sobre o real perigo da escalada da guerra para um conflito de proporções mundiais – e, portanto, nucleares, pois envolve potências com esse tipo de recurso. Censura-se as mídias russas – como se vê agora com a suspensão do canal Russia Today (RT) nos EUA, incluindo-se sanções às pessoas que colaboram com a RT e a suspensão de seus conteúdos em plataformas como o YouTube – e conduz-se o tema como se se tratasse unicamente de um devaneio do governo da Rússia.
Um paralelo nos anos 1960
Essa situação de tensão faz lembrar a crise dos mísseis de 1962, que talvez tenha sido, até hoje, o momento de maior perigo de um conflito nuclear em nossa história. Conforme o historiador José Rodrigues Mao Júnior, cuja entrevista resumimos a seguir, essa crise se iniciou em abril de 1961, com a invasão de tropas mercenárias em Playa Larga e Playa Girón, ambas situadas na Baía dos Porcos, em Cuba, invasão essa debelada pelo próprio povo cubano em armas. Essa tentativa de invasão gerou a decisão de Nikita Kruschev (então líder da URSS) de apoiar o povo cubano contra as invasões dos EUA. Os soviéticos decidiram instalar em Cuba 42 mísseis nucleares de médio alcance, acompanhados de soldados e técnicos, totalizando um efetivo de 43 mil militares soviéticos, com o objetivo dissuadir os EUA de uma nova invasão, já que agora tratar-se-ia de um ataque a uma área protegida pela URSS – e, portanto, um ataque à própria URSS. Conforme Mao Jr., “Quando o presidente dos EUA, John Kennedy, soube das instalações pelas fotografias aéreas obtidas pelos aviões-espiões da CIA, os EUA decretaram o bloqueio naval contra Cuba e a sua força de bombardeiros estratégicos foi colocada em alerta máximo. As aeronaves B-47 e B-51 eram mantidas permanentemente no ar, prontas para atacar – com artefatos nucleares – os alvos pré-determinados. Às 17:40h daquele mesmo dia, soou em Cuba o alarme convocando o povo cubano para defender a nação de um iminente ataque. No dia seguinte, o governo soviético reafirmou o seu apoio incondicional a Cuba e Fidel Castro, num pronunciamento à TV cubana, reafirmou a decisão de o povo de defender a sua independência a qualquer custo. Neste mesmo dia, foi convocada uma reunião de emergência no Conselho de Segurança da ONU, a pedido de Cuba”.
Ainda conforme o historiador, “diante da possibilidade de um conflito nuclear, boa parte da população estadunidense mergulhou num paranoico sentimento de pânico, sendo que muitos procuraram improvisar abrigos ‘antibombas’ nos quintais de suas casas. A reação da população cubana foi diametralmente oposta à reação dos estadunidenses. Enquanto os estadunidenses procuravam pateticamente se esconder em buracos cavados às pressas em seus quintais, o povo cubano […] marchava junto aos seus postos de combate, decididos a defender a sua pátria da agressão imperialista”.
Como apontou Mao Jr., foi “a determinação do governo soviético em negociar que evitou que a humanidade mergulhasse numa imprevisível catástrofe”. Assim, os soviéticos decidiram, após uma conversa telefônica entre Kennedy e Kruschev, arrefecer as hostilidades, com a URSS retirando o arsenal de Cuba e os EUA comprometendo-se a não mais organizar invasões à Ilha.
A falta que faz um telefone
A situação atual, que não envolve Cuba, mas a Ucrânia, é tão perigosa quanto a de 1962. As diferenças, no entanto, são preocupantes. Com o bloqueio midiático, somado à deterioração política da sociedade estadunidense, onde já não se sabe mais o que é verdade e o que é desinformação, a opinião pública dos EUA não tem, de modo geral, a menor ideia do que está acontecendo. Seria melhor para o mundo que estivessem desesperados a cavar abrigos antiaéreos em seus quintais; talvez assim o governo de Biden tomasse a decisão de negociar. No entanto, não estão.
Enquanto isso, Biden decidiu ignorar, propositalmente, os canais de comunicação com a Rússia. O telefone ainda é uma ferramenta útil e já garantiu a paz mundial uma vez. Poderia garantir novamente, bastando que o mandatário dos EUA tomasse a decisão de desescalar o conflito na Ucrânia, comprometendo-se a não mais fornecer armamentos e a garantir uma situação de neutralidade para Kiev: nem entrar na OTAN, nem tornar-se, por anexação, parte da Federação Russa. Biden poderia usar o telefone também para comunicar-se com seus homólogos na Europa, cuja proximidade física em relação à Rússia parece ser inversamente proporcional ao receio em relação a um conflito de maior escala. A única saída para o atual impasse é a negociação de paz, em que cada um dos lados aceita perder algo em troca do fim das hostilidades.
Por incrível que pareça, as únicas vozes que se levantam na defesa da negociação do lado dos EUA estão com Trump. São essas esquisitices da história. Não importa. Se a extrema-direita dos EUA está errada em quase tudo o que defende, nesse tema estão certos. Negar-lhes a razão é seguir no caminho do abismo nuclear.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.