Este artigo inaugura uma série de textos da ativista e editora australiana Susan Hawthorne sobre bibliodiversidade e o mercado editorial.
A nova ordem global editorial é a expressão final de uma série de fusões e aquisições que ocorreram ao longo dos últimos cem anos. Se a Igreja rapidamente dominou a impressão para seus próprios interesses no século 15, muitos livros e panfletos foram impressos por uma indústria artesanal que floresceu em torno de escritores e pensadores. Mulheres e integrantes de povos colonizados e escravizados sempre encontraram obstáculos para levar suas ideias à prensa, mas, apesar disso, grupos marginalizados sempre encontraram meios para fazer circular suas palavras.
Durante o século 20, o livro se espalhou pelo mundo, especialmente no formato de bolso, com seu papel barato e capa maleável. Allen Lane, fundador da Penguin, levou essa fórmula para a praça pública nos anos 1930. Dois pence e meio era tudo o que ele pedia por um livro. Eu me lembro da fila de pinguins laranjas, dos livros de ciências com seus pelicanos azuis e novelas policiais de capas verdes em nossa livraria, na zona rural da Austrália. Os clássicos pretos não haviam chegado lá e eu já tinha superado a fase dos livros infantis com seus papagaios-do-mar, mas as outras cores populares preenchiam as prateleiras.
No século 21, nos prometem que o “digital” nos salvará: que os eBooks a preço de banana madura são o caminho, que podemos publicar apertando o botão do mouse. Mas o quanto disso é verdade? E que papel podem jogar os editores independentes numa economia global dominada pelo marketing?
A economia do marketing, sob o controle de pesadíssimas e capitalizadas megacorporações cujos nomes estão na boca de todo leitor, prometem que tudo isso vai ocorrer. O processo de concentração editorial segue o mesmo caminho da industrialização de outros produtos. Ambos buscam um sempre crescente controle sobre as pessoas que afirmam desejar satisfazer com seus produtos.
Enquanto as grandes indústrias químicas interferem nos métodos da produção de alimentos, a “grande edição” está sempre nos distraindo com suas últimas linhas de produtos, grandes negócios, livros que custam uma miséria. Mas assim como o produtor que vende seu leite ao supermercado por um preço abaixo do custo, também é demandado do editor que negocie seus livros, que passaram anos sendo nutridos, cuidadosamente preparados, visualmente tratados e pensados em suas qualidades, por alguns trocados.
Foto: Renate Klein
Editores independentes e pequenos editores são como plantas raras que brotam entre os grandes grupos
Editores independentes (a definição virá mais à frente) não descarregam novos títulos numa produção ao estilo de uma fábrica. Provavelmente a maioria das pessoas envolvidas na produção dos livros está mal remunerada e sofrendo com a limitação de recursos, mas de alguma maneira essas pessoas produzem os livros.
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Megacorporações editoriais globais não encorajam o extraordinário, o original, o arriscado, o inventivo – livros que se tornarão fundamentais para a próxima geração porque têm algo novo e relevante a dizer. Megacorporações editorais são sobretudo números, mesmice, fórmulas seguidas de acordo com o mais recente megassucesso. É uma história parecida com a de J.K. Rowling, a nova versão de “setenta tons”, uma retomada de um crepúsculo numa região lotada de personagens zumbis que marcham como tropas de soldadinhos de capa vermelha?
A grande edição e as grandes redes de livraria vão eliminar tudo o que for diferente disso ou fazer caber em num produto do modelo “um tamanho para tudo”. Uma linha de livros, como uma linha de lingeries. Como André Schiffrin uma vez escreveu sobre o mercado de ideias, “não me refiro ao valor de mercado de cada ideia; pelo contrário, o que quero dizer é que todas as ideias devem ter a oportunidade de serem expostas ao público, de ser expressas e de ter seus argumentos completamente apresentados” (Schiffrin, 2001, citado por Wills, 2001). Nas megacorporações editoriais, cada livro tem a obrigação de pagar-se por si mesmo e ainda bancar custos extraordinários do setor, como escritórios e salários de CEOs. Isso significa que livros que levam tempo para decolar, livros que mudam as normas sociais, eles são têm menores chances de serem publicados.
Editores independentes procuram um caminho diferente. Um caminho de engajamento com a sociedade e métodos que reflitam algo importante sobre os lugares e nichos que ocupam. Editores independentes e pequenos editores são como plantas raras que brotam entre os grandes grupos, mas que adicionam algo diferente a esse meio: elas alimentam o solo, trazem cor ou perfurme ao mundo.
A Aliança Internacional dos Editores Independentes define um “editor independente” como aquele que não recebe fundos ou apoios, financeiros ou de outro tipo, de instituições como partidos políticos, organizações políticas ou universitárias, o que lhes dá o direito de tomar decisões sobre o que publicam. Essa definição não impede os editores de receberem subvenções, mas o programa editorial não pode ser determinado pelo agente financiador.
Outro elemento da definição da aliança inclui a restrição à participação de agentes do mercado financeiro no comando da editora (isto é, a editora não pode ser um veículo de produção de lucro no curto prazo para um banco ou corporação). Além disso, seus catálogos devem funcionar de modo que os livros da linha de frente trabalhem em conjunto com os de fundo. Editores independentes devem perguntar-se a si mesmos sobre sua capacidade de promover a bibliodiversidade através do debate público, trabalhando em conjunto com livrarias o independentes, bibliotecas públicas, organizações locais, assim como no desenvolvimento de parcerias internacionais com outros editores independentes, produzindo coedições e traduções. A publicação de trabalhos originais de autores é outro elemento importante, em oposição ao modelo de compra de sublicenças de commodities do mercado de livros de massa.
Editores independentes não são híbridos. São, na realidade, a fonte de diversidade cultural. Eles carregam a bibliodiversidade para fazer frente ao beemote gigante das megaeditoras e das megarredes de livraria. Este manifesto se equilibra na corda bamba que liga o pessimismo no curto prazo ao otimismo no longo.
Há muitos desafios para os editores independentes no mercado global e o advento da edição digital abre novas oportunidades ao mesmo tempo em que simultaneamente traz a ameaça de novas formas de recolonização de ideias e de propriedades intelectuais. Escritores, editores, livreiros, bibliotecários, leitores e revisores atuam hoje num ambiente carregado politicamente.
Editar é uma atividade social, cultural e transformativa, mas é uma atividade que pode também ser apropriada por aqueles que não estão do lado da justiça social e da igualdade de expressão.
*Tradução de Haroldo Ceravolo Sereza.
* Artigo publicado originalmente no site Painel Acadêmico
Bibliografia
Schiffrin, André. 2001. The Business of Books: How International Conglomerates Took over Publishing and Changed the Way We Read. London: Verso.
Wills, Meredith Sue. 2001. ‘The Business of Books by André Schiffrin’ [Review]. American Ethical Union Library. <http://www.meredithsuewillis.com/Business%20of%20Books.html>. Accessed 22 April, 2014.
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[1] Esta definição é derivada de uma combinação de discussões em encontros da Aliança Internacional dos Editores Independentes, em particular com o coordenador de língua hispânica Juan Carlos Sáez e a diretora da entidade, Laurence Hugues. Ver também Colleu (2006), p. 94-97.
[2] Animal bíblico, por vezes identificado ao hipopótamo, descrito por Deus no Livro de Jó: “Veja o Beemote/ que criei quando criei você/ e que come capim como o boi.// Que força ele tem em seus lombos!/ Que poder nos músculos do seu ventre!// Sua cauda balança como o cedro;/ os nervos de suas coxas/ são firmemente entrelaçados.// Seus ossos são canos de bronze, seus membros são varas de ferro.” (Bíblia Online, http://www.bibliaon.com/jo_40/. N.doT.)
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A autora
Susan Hawthorne trabalhou no mercado editorial por mais de trinta anos, como escritora, organizadora de festivais, revisora, editora, publisher e conselheira. Em 1991, após anos trabalhando como editora da Penguin Austrália, fundou, com Renata Klein, a Editora Spinifex. Vem escrevendo extensivamente sobre a indústria e o mercado editoriais, co-organiza treinamentos digitais para pequenas e grandes empresas, dá aulas de escrita criativa e editoração e participa ativamente de importantes associações de escritores e editores. É membro da Associação de Autores Australianos, do PEN Club de Melbourne, dos Poetas Australianos, da Rede de Pequenos Editores Australianos e do Comitê dos Editores Independentes da Associação Australiana de Editores. Desde 2011, tornou-se a coordenadora dos editores de língua inglesa da Aliança Internacional dos Editores Independentes, baseada em Paris. É professor-adjunta do Programa de Escrita da James Cook University e publisher da Spinifex Editora (http://www.spinifexpress.com.au/).