A caminho da cúpula do G20 no Rio de Janeiro, o presidente em fim de mandato e derrotado nas eleições presidenciais dos EUA, Joe Biden, decidiu autorizar que a Ucrânia utilize mísseis de longo alcance (ATACMS) fabricados pelos EUA. Ainda acenou positivamente para que Inglaterra e França permitam o uso de mísseis fornecidos por eles à Ucrânia (os Storm Shadow). Como enfatizou Vladimir Putin no mês de setembro, esses equipamentos só podem funcionar se operados com o auxílio de satélites dos EUA e países da OTAN e, ainda, dependem do conhecimento de especialistas desses países. Não se trata, portanto, de “apenas” fornecer os mísseis, mas de efetivamente participar do seu uso contra o território russo. Já naquela declaração, Putin enfatizava que um acontecimento como esse mudaria o caráter da guerra, que deixaria de ser um conflito entre Rússia e Ucrânia e passaria a ser um conflito entre a Rússia e a OTAN.
Desde a cúpula da OTAN, ocorrida há exatos quatro meses, os tambores de guerra já eram tocados com mais ímpeto. Naquela ocasião, José Luis Fiori perguntava: que horas são no relógio de guerra da OTAN? Faltavam apenas 90 segundos no relógio do juízo final e os participantes do convescote do Tratado do Atlântico demonstravam estar perfeitamente alinhados em seu ímpeto de buscar a escalada da guerra no leste da Europa.
O Doomsday Clock (relógio do juízo final) do Boletim dos cientistas atômicos da Universidade de Chicago é um relógio simbólico, surgido em 1947 e mantido pelo comitê da organização. O relógio metafórico “mensura” o risco de uma guerra nuclear. Se algum dia o ponteiro do relógio chegar a marcar “meia-noite” significará que a humanidade mergulha no abismo. A metáfora nasceu da tensão do pós-guerra, logo após o uso da bomba atômica pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki. Durante toda a Guerra Fria pairou no mundo o temor de uma nova escalada bélica. O relógio foi criado como metáfora do risco que a humanidade corria diante da escalada armamentista. Nos últimos anos, os “ajustes” do tempo que resta antes do cataclisma passaram a considerar outros temas, como as mudanças climáticas e as epidemias e pandemias.
Desde janeiro deste ano o relógio marca o intervalo mais curto de sua história: faltam apenas 90 segundos para a meia-noite. Mas segundo as análises publicadas no portal do boletim dos cientistas, o risco vem, além do aquecimento global e da pandemia de covid-19 (quando o relógio fora ajustado para 1 minuto e quarenta segundos), da invasão da Ucrânia pela Rússia.
Fiz uma visita ao “relógio” antes de escrever essa coluna, motivada por uma curiosidade: o anúncio de Biden sobre os mísseis teria já afetado o relógio do apocalipse? A resposta é não. Por enquanto, o conselho dos cientistas atômicos não tomou nenhuma decisão a respeito disso. Mas encontrei um artigo curiosíssimo, de uma importante acadêmica “sênior”, pesquisadora associada ao Project on Managing the Atom (MTA) na Harvard Kennedy School’s Belfer Center. Em apertada síntese, o artigo da pesquisadora lamenta que Biden tenha demorado tanto tempo para tomar essa decisão. Argumenta que essa decisão ajuda, mas não resolve.
Não é curioso que o site que abriga o relógio de Einstein e Oppenheimer, criado para alertar o mundo sobre o perigo da escalada nuclear, publique textos que relativizam o papel dos EUA e da OTAN na escalada em que nos encontramos nesse exato momento? De fato é curioso, mas na verdade apenas revela que até mesmo o monitoramento do risco nuclear está submetido à narrativa dos EUA sobre quem são os bandidos e quem são os heróis. Aparentemente, o relógio só mudará a posição de seus ponteiros se puder atribuir os riscos às ações de algum país que desafia a posição dos EUA no cenário internacional.
Mas isso está próximo de acontecer: após o anúncio de Biden, a Rússia anunciou um novo decreto que regulamenta o uso de armas nucleares para dissuasão. O texto prevê respostas rápidas a todo tipo de ação que possa significar uma ameaça à integridade do território russo, incluindo respostas à realização de exercícios militares de larga escala nas fronteiras do país. O governo russo deixa claro que enxerga a autorização dos países da OTAN de que a Ucrânia lance mão de armamentos de longo alcance como uma declaração de guerra. O relógio já pode ser alterado, atribuindo-se à Rússia as ações causadoras de perigo, desde que omita-se que Biden, assim como os mandatários da França e da Inglaterra já possuíam, desde o mês de setembro, todas as informações necessárias a respeito de qual seria a interpretação russa desse ato hostil. A Rússia, possuidora de um poderoso arsenal nuclear, tem capacidade de atingir o território dos EUA e a Europa em pouco tempo após um ataque. E caso não o faça, será destruída pelas forças da OTAN. Diante disso, a decisão de Biden não pode ser interpretada como um “erro de cálculo”. A pergunta fundamental hoje é: qual é o cálculo?
Deseja a administração Biden impor condições para um cessar fogo e um acordo de paz desvantajoso para a Rússia? Teria o governo Biden a intenção de escalar o conflito a ponto de tornar-se uma guerra generalizada em toda a Europa e América do Norte? Será um blefe? Acaso Biden pretende usar a escalada do conflito para causar dificuldades ao seu sucessor, de modo que não lhe restem alternativas senão seguir o curso da guerra?
São muitas as questões que decorrem desse ato, mas apenas duas certezas: 1) à Rússia não resta outra alternativa senão manter a posição de confrontação – a alternativa a isso, dado o comportamento dos EUA e da OTAN, seria a rendição e a consequente perda territorial; e 2) Estamos a menos de 90 segundos do fim da sociedade como a conhecemos e Joe Biden poderá figurar nos livros futuros como o grande protagonista do desastre nuclear. Resta saber se haverá no futuro alguém para escrever os livros de história.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.