Chegamos ao último escrito da nossa série sobre Guerreiro Ramos e a questão racial no Brasil. Nos textos anteriores, conseguimos apresentar e fazer a crítica das ideias do sociólogo baiano sobre a questão negra no Brasil. É importante destacar que nos centramos no livro Negro Sou, organizado por Muryatan S. Barbosa, evitando fazer o debate sobre os textos onde Guerreiro debate a questão racial de forma implícita. Por exemplo: no livro O problema Nacional do Brasil, quando formula sobre a formação do povo brasileiro, o autor passa ao largo do papel da escravidão no século XIX e o destino da população negra no pós-abolição – seria fácil apontar os erros dessa formulação.
Mas esse conjunto de textos não tem como objetivo analisar toda a obra de Guerreiro Ramos – embora no processo de escrita estivesse em perspectiva o conjunto da obra do autor. Reforço que você, leitor ou leitora, não conheça a produção do sociólogo nacionalista apenas pelos meus textos. Leia, forme seu próprio juízo, critique e duvide da minha investigação.
No primeiro escrito dessa coluna relatei como em minha formação, na graduação e mestrado, não tive oportunidade de estudar os grandes nomes da cultura brasileira do momento pré-golpe empresarial-militar de 1964. Na sala de aula, na UFPE, uma das mais prestigiadas universidades públicas do Norte e Nordeste, nunca tive aula sobre Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Nelson Werneck Sodré, Alberto Passos Guimarães, Edison Carneiro e tantos outros – em paralelo, porém, tive que ler muitos textos de Norberto Bobbio, Hannah Arendt, Michel Foucault, Friedrich Nietzsche, etc.
Estou convencido de que é fundamental avançar numa agenda de pesquisa que mergulhe na história e na produção teórica brasileira e latino-americana. Para fazer a Revolução Brasileira precisamos estudar com disciplina, dedicação e rigor teórico a nossa formação econômico-social. Isto não significa, é claro, desprezar a história mundial ou fechar-se em qualquer “nacionalismo metodológico” ou escolher os autores importantes de acordo com sua nacionalidade. O comunista precisa ler tudo o que considerar importante para compreender a realidade.
Mas não estudamos em um vácuo histórico-social. Somos um país de capitalismo dependente forjado a partir de mais de 300 anos de colonialismo e escravidão. Da época colonial herdamos uma ideologia do colonialismo que foi brilhantemente caracterizada por Nelson Werneck Sodré no seu clássico Introdução à Revolução Brasileira (usamos a edição da Civilização Brasileira):
“A ideologia formulada e mantida pelas entidades que impulsionam o colonialismo político encontra naturalmente extraordinária receptividade entre os componentes da classe dominante nas colônias. No caso brasileiro, que é o que nos interessa, tal classe esposa ardentemente aquela ideologia, que lhe convém de forma integral, que lhe cabe como uma túnica devidamente recortada. E nem poderia acontecer de maneira diversa, uma vez que a classe dominante na colônia, e que depois no império, representa, como que por procuração, aquela que, no continente europeu, criara e desenvolvera o colonialismo. Aceita todas as suas formulações e defende, quando é necessário, ponto por ponto, todo um corpo de conceitos que, no fim de contas, define irremissível condenação ao próprio país […] E é esta razão, e não outra, que faz dos representantes daquela classe, aqui como em outras regiões coloniais, uns transplantados, uns exilados, de olhos postos na Europa, cegos a tudo o que os rodeia. Incapazes de sentir e de interpretar a sua própria terra. E é por isso também que os únicos elementos capazes de interpretá-la e senti-la são os que vem de baixo, sobre os quais recai, implacável, o peso de uma ideologia fundamente elaborada e vigorosamente mantida” (SODRÉ, 1967, p. 151-52).
Superada a época colonial, adentramos no capitalismo dependente a partir de sucessivas modernizações conservadoras, preservando o lugar subordinado na divisão internacional do trabalho. É Clóvis Moura, em Rebeliões da Senzala (Editora Anita Garibaldi), quem analisa com precisão essa longa transição histórica do escravismo tardio para o capitalismo dependente:
“Essa estrutura rigidamente hierarquizada dentro do modelo escravista era necessária para garantir uma economia baseada na exportação de produtos primários subordinados aos interesses do mercado mundial. Com isso, ficou descartada a possibilidade de integração social, econômica e cultural daquelas grandes parcelas de força de trabalho liberadas que constituirão uma massa de marginalizados, saída das senzalas. Passa-se, através desse mecanismo subordinado, do escravismo para o capitalismo dependente, periférico, em face desse longo período escravista, de um lado, e de outro, pelo estrangulamento externo do capitalismo monopolista que penetrou simultaneamente à reunião do sistema escravista no Brasil. Na medida em que o escravismo se descompunha as nações dominadas do mercado mundial passaram a aplicar capitais no Brasil, naqueles setores estrategicamente relevantes como portos, estradas de ferro, comunicações, bancos e outras formas de investimentos. Espalharam esses investimentos nas áreas mais estratégicas, formando uma verdadeira rede nacional de subordinação” (MOURA, 2020, p. 49).
O capitalismo dependente é indissociável do colonialismo cultural, complexo social determinante da vida nacional das classes nos países subordinados na divisão internacional do trabalho. O colonialismo cultural é a ideologia – materializada em aparelhos ideológicos e no sistema de dominação política – de legitimação e reprodução da dependência e do subdesenvolvimento que visa, centralmente, ocultar do debate político e do conhecimento das classes populares essa realidade periférica e seus determinantes, impondo programas de pesquisas acadêmicas, conceitos, categorias, noções e tendências na “opinião pública” estranhas à nossa realidade, pois gestadas nos países centrais do capitalismo – ou com inspiração neles –, com o objetivo de garantir os interesses de classe do imperialismo e da burguesia interna.
Guerreiro Ramos foi um dos milhões de brasileiros que achavam ser possível superar o colonialismo cultural e construir uma nação com autonomia econômica, tecnológica, produtiva, cultural e política. Seu famoso livro de 1958, A redução Sociológica, é uma tentativa ousada e criativa de sistematizar e orientar esse processo que estava, na visão do sociólogo, se desdobrando no próprio processo histórico brasileiro, corolário direto dos efeitos da Revolução de 1930 e do desenvolvimento urbano-industrial que o país vivia (usamos a recente reedição do livro publicado pela Editora Ubu).
“No Brasil, essas condições, que estão suscitando um esforço correlato de criação intelectual, consistem principalmente no conjunto de transformações de infraestrutura que levam o país à superação do caráter reflexo de sua economia. Desde que nele se configurou um processo de industrialização em alto nível capitalista, converteu-se o espaço nacional num âmbito em que se verifica um processo mediante o qual o povo brasileira se esforça em apropriar de sua circunstância, combinando racionalmente os fatores de que dispõe. O imperativo do desenvolvimento suscitou a consciência crítica” (RAMOS, 2024, p. 52-53).
O Brasil estava sendo descoberto pelos brasileiros. Como sabemos, em 1964 se inicia o fim desse grandioso empreendimento histórico nacional-popular. A modernização conservadora operada pela ditadura empresarial-militar veio acompanhada de um empobrecimento cultural, teórico e de identidade nacional do qual até hoje não nos recuperamos. Sai de cena o intelectual crítico, militante, nacionalista, comprometido com a superação da dependência e do subdesenvolvimento. Entra no seu lugar o acadêmico de sucesso, conectado com os “principais temas e autores” da Europa e do Estados Unidos, hábil no manejo da burocracia universitária, isolado socialmente do povo trabalhador, “neutro” e sem engajamento militante – afinal, na sua visão, engajamento militante não combina com ciência.
Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos no pré-golpe de 1964 eram adversários teóricos. O enfrentamento entre os dois foi um dos mais memoráveis da história brasileira. Guerreiro Ramos defendia uma sociologia militante, radicalmente nacional, comprometida com a práxis, preocupado em entender o Brasil como totalidade e vocacionada para enfrentar a dependência. Florestan Fernandes queria um padrão científico internacional, uma sociologia que não “misturava” ciência, ideologia e política; uma esfera científica relativamente autônoma dos conflitos políticos em cena. Guerreiro Ramos ironizava, dizendo que em breve Florestan se tornaria um militante, defensor de um saber engajado, salvacionista do país. Numa daquelas maravilhosas ironias da história, Florestan tornou-se um sociólogo militante, um revolucionário que combinava ciência e projeto político, numa práxis emancipatória, e Guerreiro Ramos virou um acadêmico de “padrão científico internacional” e maldizia um ambiente politizado e ideologizado como inimigo da prática científica – chegando a falar que onde dominava o nacionalismo, era impossível fazer ciência. Guerreiro Ramos, em um texto de 1968, escrito e publicado durante seu exílio nos Estados Unidos, afirma:
“Por exemplo, a ciência, principalmente a ciência social, dificilmente prospera em ‘sociedades completamente politizadas’ (Merton, 1967, pág. 542) ou em sociedades em que uma ideologia totalitária, como o nazismo, marxismo-leninismo, ou nacionalismo, prevalece. Outro fator que prejudica a ciência é o predomínio de critérios prescritivos no sistema social. A institucionalização da intersubjetividade científica é impossível em sistemas sociais impregnados por tais critérios, porque eles são incompatíveis como o que foram consideradas condições do ethos da ciência: racionalidade, universalismo, individualismo, comunalidade e isenção”[1].
No solo histórico da luta de classes, tanto o Guerreiro Ramos pré-golpe, defensor de uma sociologia militante e radicalmente nacional, quanto o Florestan Fernandes pós-ditadura, defensor de uma sociologia crítico-revolucionária, foram derrotados. As relações capitalistas dependentes, geradoras do colonialismo cultural, apenas se aprofundaram, e hoje, na intelectualidade brasileira, universidades e organizações políticas, reina com pouca contestação um emburrecedor eurocentrismo, sempre acompanhado de um desejo ingênuo de ser “ocidental” como a França, Estados Unidos e afins.
Embora não seja possível ir até as últimas consequências da reflexão nesse escrito, vale pontuar que no século XXI o Brasil passa por uma substantiva reconfiguração das suas relações de produção, propriedade e dinâmica de acumulação, esvaziando de dinamismo o tecido urbano-industrial do litoral e vivenciando um gigantesco crescimento dos setores primário-exportadores do centro-oeste, norte e partes do nordeste e sudeste. O famoso agronegócio é um setor da classe dominante cada vez mais poderoso desde uma perspectiva econômica, política, ideológica e institucional – tendo uma ligação direta com o mercado mundial que lembra bastante a economia do café do período da República Velha ou República Oligárquica (1889-1930).
Podemos vislumbrar essa realidade a partir de números. Na Amazônia Brasileira temos 63 milhões de cabeças de gado para 28 milhões de habitantes. Em 2003, o Brasil era o terceiro maior exportador mundial (em toneladas) de carne bovina. Em 2010 estávamos em primeiro lugar, responsáveis por 23% de toda carne bovina exportada mundialmente. Em 2022, esse número se elevou para 32%, exportando duas vezes mais que o segundo colocado no ranking, a Índia. No caso da soja, ainda tendo 2003 como ano de referência, o Brasil era responsável por 25% das exportações globais. Em 2018, esse número já era de 50%. Analisando de forma combinada, 70% das exportações brasileiras são de bens primários: soja, carne bovina, cana de açúcar, milho, variados tipos de cereais, petróleo e minério bruto. Só a soja é responsável por 12% de todas as exportações brasileiras.
Um país de capitalismo dependente onde cada vez mais o centro da acumulação capitalista é a produção primário-exportadora, a especulação financeira, o comércio e serviços de baixíssima complexidade. Um país desse tipo não precisa de centros universitários públicos de excelência, formação em massa de força de trabalho especializada e aparelhos de Estado ligados ao planejamento e pesquisa para reprodução das condições gerais de acumulação do capital. A Unicamp, USP, IBGE, UFRJ, IPEA e vários aparelhos construídos no século XX hoje são, tendencialmente, cada vez menos necessários na reprodução do capitalismo dependente brasileiro.
É notável como o Rio Grande do Sul – um estado historicamente pioneiro na criação de aparelhos de pesquisa, planejamento e política industrial – passou por um radical processo de desmodernização nos últimos anos, e como isso gerou pouquíssimo impacto no debate público nacional[2]. Também é chamativo como o agronegócio, chamado de tech, pop e tudo, tem sua cadeia produtiva quase inteira dependente de monopólios estrangeiros: a coisa mais brasileira na produção de soja é a degradação ambiental que fica para o país[3].
É nesse cenário que vivemos um reforço do colonialismo cultural e do agringalhamento da nossa linguagem política e teórica. É difícil achar uma moda imbecil dos Estados Unidos – seja na cultura, no mundo acadêmico ou na política eleitoral – que não tenha sido ingerida com casca e tudo no Brasil. Exemplo chocante é como aceitamos enquadrar o debate sobre racismo, patriarcado, heteronormatividade e afins, no arco de palavras como “identitário”, “identitarismo”, “pautas identitárias”, etc. Dez anos atrás, chamávamos esses complexos sociais de opressão e fazíamos um debate sobre a relação entre opressão e exploração.
Vivemos uma competição para ver quem é mais adaptável aos “padrões internacionais”. Uns querem ser a filial do Partido Democrata dos Estados Unidos (na direita, dos Republicanos). Outros querem ser decoloniais com as bênçãos de algum pensador europeu que plagiou um boliviano ou peruano. Outros ainda, seguindo a tradição, querem fazer parte do departamento francês de ultramar.
Precisamos de uma agenda política e científica voltada para mergulhar na história brasileira e latino-americana. O combate ao liberalismo, pós-modernismo e reacionarismo no movimento negro brasileiro – parte fundamental das pelejas pela Revolução Brasileira – não será feito sem mudar os termos teóricos do debate, os marcos de referência e o horizonte político e de classe da produção teórica. Explico cada um dos aspectos.
É preciso pensar o racismo como uma totalidade estruturante da totalidade que é a formação social brasileira – incompreensível quando desconectada das determinações da divisão internacional do trabalho e do imperialismo global. O racismo não é só um fenômeno subjetivo, cultural e de identidade e muito menos uma colcha de retalhos com vários adjetivos: racismo religioso, racismo jurídico, racismo algorítmico, racismo estético, racismo institucional, racismo recreativo, etc. Hiperfragmentar a compreensão do racismo, desconectando da crítica da economia política e do debate sobre a formação social brasileira, é útil para produzir descrições fenomênicas superficiais, que caminham para propor alguma política pública de caráter limitado e de baixo orçamento que vai incidir na vida de uma pequena parcela dos grupos diagnosticados como necessitados daquela política pública.
No acúmulo teórico do Serviço Social Brasileiro é conhecida a reflexão de que as contradições da ordem capitalista foram transformadas em “questão social” e abordadas de forma fragmentada para torná-las operativas nos marcos do Estado burguês e fundamentar políticas sociais que tratam das suas expressões: o problema da moradia, o problema da população em situação de rua, o problema do desemprego, o problema da fome, o problema do trabalho infantil, etc. Cada “problema”, expressão da questão social, é tratado isoladamente, com políticas públicas específicas, no máximo com “articulação” das políticas sociais – no final, temos um gerencialismo das contradições, e não sua superação.
Com todos os problemas que já apontamos, Guerreiro Ramos conseguiu pensar o país como totalidade e projetar as mudanças a partir de um horizonte de transformações radicais da estrutura produtiva, afinal, não se trata só da distribuição da riqueza socialmente produzida via políticas públicas, mas da dinâmica de produção dessa riqueza. Transformação produtiva, mudança do papel do país na divisão internacional do trabalho e distributivismo – com seus rebatimentos na cultura, subjetividade e normatividade social: tudo isso estava em tela para o sociólogo baiano.
Num país cada vez mais afundado no subdesenvolvimento e na dependência e em franca regressão civilizatória, um marco teórico hiper fragmentado, culturalista/semiologizado e institucionalista de ler a realidade pode ser útil para disputar minguados nichos do orçamento público. Inegavelmente é funcional para vários grupos, onde todos atuam na lógica do “farinha pouca, meu pirão primeiro” – são esses os termos teóricos para disputar as migalhas que sobram do banquete da burguesia e do imperialismo.
O problema é que na república burguesa do Banco Central privatizado, do Novo Teto de Gastos, do agronegócio e da especulação financeira, o espaço para políticas públicas é cada vez mais restrito. Vivemos um tempo de orçamentos medíocres para programas de alcance limitadíssimos, enquanto a maioria da população negra afunda cada vez mais na miséria, na superexploração da força de trabalho e na piora das condições de vida – enquanto corre a passos largos a mercantilização acelerada de tudo (saúde, educação, cultura, segurança, etc.).
Além de pensar o racismo como uma totalidade, um complexo social que tem seu fundamento nas relações materiais de produção, na estrutura de classe e na dinâmica de exercício do poder político, é fundamental ter como marco teórico a particularidade nacional da questão racial. Não estamos nos Estados Unidos, na África, na França ou no Caribe.
É útil pensar em termos de diáspora africana, atlânitco negro e população e negra global, desde que não suma de vista a particularidade da questão racial brasileira. Precisamos de quantos exemplos de transposição mecânica da realidade racial dos Estados Unidos para o Brasil para nos convencermos da inutilidade desse procedimento? Nos Estados Unidos, o Black Lives Matter foi um movimento de massas e com amplos rebatimentos na luta de classes do país. No Brasil, a tentativa de abrasileirar a coisa, o Vidas Negras Importam, foi apenas uma palavra de ordem na boca de setores militantes e de classe média sem impacto nenhum no enfrentamento ao extermínio da população negra – a Bahia, o estado mais negro do Brasil, segue o campeão nacional de violência policial. Com um detalhe: a Bahia é governada pelo PT há cinco mandatos!
Guerreiro Ramos tinha o mérito de buscar pensar o que particulariza o Brasil no mundo. A nossa história, dinâmica de classe, cultura, etc. O fazia, porém, fugindo de patriotadas ingênuas ou um tosco “nacionalismo metodológico”. A questão, embora bem intrincada e com vários desafios, pode ser resumida da seguinte forma: o patrimônio teórico universal deve ser questionado com a seguinte pergunta – esta reflexão é útil para pensar a realidade brasileira ou diz respeito, no fundamental, às particularidades histórico-concretas de outra formação econômico social? Voltando para A Redução Sociológica, o sociólogo nacionalista deixa claro que sua preocupação com a realidade nacional não nega a universalidade:
“A redução [sociológica] ganhou adeptos exaltados, que dela fizeram a expressão de um nacionalismo agressivo e intransigente, espécie de revanche, no domínio da cultura e da ciência, contra o pensamento alienígena. Dessa adesão, o representante mais qualificado é o sr. Álvaro Vieira Pinto que, em Consciência e realidade nacional, promove a nação (é até mesmo a nação brasileira), ao plano das categorias gerais do conhecimento, ao lado, por exemplo, da totalidade, da objetividade, da racionalidade […] Em suma, a principal razão do ‘desvio’ do sr. Álvaro Vieira Pinto foi não ter assimilado a noção de comunidade humana universal, à luz da qual se concilia perfeitamente o comprometimento do cientista com seu contexto histórico, e o critério da universalidade, sem o qual não existe verdadeira ciência” (RAMOS, 2024, p. 23).
É importante pontuar que não é todo conhecimento que deve ser interrogado a partir de um nível imediato de operacionalização prático-política para intervenção numa dada realidade nacional e histórica. Não faria sentido algum, por exemplo, questionar se o estudo da Ciência da Lógica de Hegel, a ontologia do ser social de Lukács ou os seminários de Lacan são “úteis” para entender o Brasil. Falamos de um nível de abstração da prática científica diretamente ligado à operacionalização da ação das classes, frações de classe e grupos sociais em conflito e que se proponha a pensar a realidade na sua dimensão histórico-concreta. Guerreiro Ramos, na sua formulação sobre a redução sociológica, não deixa dúvidas quanto à dimensão do conhecimento que é objeto de sua crítica e formulação. No capítulo “duas ilustrações da redução sociológica” cita como um dos exemplos do transplante mecânico de ideias de um país central do imperialismo (no caso, os Estados Unidos) para a sociologia brasileira a preocupação com o “controle social” nos termos estadunidenses. O sociólogo argumenta longamente como a dinâmica de classe e de desenvolvimento capitalista daquele país oferece sentido e intervenção sociopolítica a esse programa de pesquisa, não se repetindo essas condições na sociedade brasileira.
Desapareceram os suportes histórico-materiais para sustentar a redução sociológica como um movimento de massas tal como Guerreiro Ramos pensava em 1958. Mas a preocupação segue válida. É só com os pés bem fundos na lama brasileira que poderemos aproveitar de verdade as contribuições universais. Fidel Castro, por exemplo, foi o grande líder da Revolução Cubana não porque tinha uma ótima exegese de Marx, Engels e Lênin. Mas porque – dentre outros talentos – soube usar as obras de Marx, Engels e Lênin inseridas no dinamismo e na história de Cuba, dando ares leninistas para José Martí e ares martinianos para Lênin.
Um belo exemplo dessa preocupação aparece sob a pena de Mao Zedong. O líder revolucionário chinês foi exemplar no difícil trabalho de forjar um conhecimento crítico vocacionado à prática que assimila todo patrimônio universal sem afastar-se das particularidades da China. Seus escritos são prova disso. A obra de Mao Zedong, do início ao fim da vida, sintetiza o quão bem pode servir o marxismo quando corretamente acompanhado do entendimento do solo nacional. O trecho a seguir ilustra perfeitamente do que estamos falando:
“Particularmente significativo é o fato de que muitos poucos conhecem realmente a história do Partido Comunista da China e a história da China nos últimos cem anos contados desde a guerra do ópio. Ninguém, praticamente, se ocupou com seriedade da história econômica, política, militar e cultural da China nos últimos cem anos. Ignorantes sobre seu próprio país, alguns sabem unicamente contar histórias da Grécia Antiga e outras terras estrangeiras, e mesmo esses conhecimentos são uma lástima, foram recolhidos pedaço a pedaço num amontoado de velhos livros estrangeiros. Durante vários decênios, muitos dos que estudaram no estrangeiro sofreram dessa doença. Vindos da Europa, América ou Japão, só sabiam papaguear coisas estrangeiras. Transformados em fonógrafos, esqueciam que o dever é compreender aquilo que é o novo e criar o novo. Essa doença infectou igualmente o Partido […] Nas escolas, nos cursos para quadros em exercício, os professores de filosofia não orientam os alunos para o estudo da lógica da Revolução Chinesa; os professores de economia não orientam para o estudo das características da economia chinesa; os professores de ciências políticas não orientam para o estudo das táticas da Revolução Chinesa; os professores de ciência militar não orientam para o estudo da estratégia e tática adaptadas às características especiais da China; e assim por diante. Daí resulta uma generalização de erros e um grande prejuízo para as pessoas”.[4]
Por fim, chegamos no horizonte político e de classe. Onde queremos chegar? Que Brasil queremos? Era claro o projeto de Guerreiro Ramos, sua estratégia de Revolução Brasileira. É fácil criticar todos os erros e ilusões à luz do que aconteceu em 1964. Mas ao menos havia o que criticar. Hoje, em clima asfixiante, vivemos um presentismo angustiado. Não existe projeto de país do povo trabalhador e o que se chama de esquerda hoje é, grosso modo, um campo político de reprodução do neoliberalismo com discurso abstratamente humanista e apelo de algumas políticas sociais.
Simplesmente não existe horizonte político para acabar com o racismo no Brasil. A representatividade no Estado e no mercado privado tem que ir até onde? Quando todos os juízes do STF, deputados e senadores do Congresso, membros do executivo nos três níveis, CEOs de empresas e maioria dos intelectuais e artistas forem negros, teremos o fim do racismo? Precisamos de quantas políticas públicas? Quanto de orçamento?
É um eterno presente. Uma incidência parlamentar aqui, outra captação de recursos ali, uma bancada negra acolá, um estatuto da igualdade racial (que nunca sai do papel) em outra banda. E assim segue. Num acúmulo de movimentos desconexos, sem horizonte, sem perspectiva nacional, sem o básico da política: definir explicitamente inimigos e aliados.
Seria ótimo uma presidente negra ou negro. Mas para executar que projeto? Apoiando-se em que bases sociais? Lutando contra quem? Para construir qual Brasil? Indo além: basta só mudar a composição etnico-racial dos membros da alta burocracia do Estado burguês? É suficiente mais “negros e negras em espaço de decisão”? Como estão configurados esses “espaços de decisão”? É uma tarefa bastante difícil achar uma estratégia política e um projeto de país no âmbito do movimento negro – e das esquerdas no geral – seja para concordar ou discordar.
Em síntese, é preciso dizer que mesmo por um caminho errado, Guerreiro Ramos acertou muito na sua conclusão: a condição de dependência apresenta uma situação de paralisia histórica. Os problemas de sempre – fome, desemprego, analfabetismo, violência policial, debilidade no acesso à saúde e educação, degradação ambiental, etc. – estão permanentemente nos atormentando, numa eterna reatualização dos dramas do povo trabalhador. A condição de dependência é, se me permitem um certo impressionismo teórico, uma espécie de fim da história. A aparência de uma mudança onde nada muda, uma série de transformações e rupturas onde a essência é a permanência.
A luta de classes é o motor da história, disseram Marx e Engels. Enquanto a burguesia e o imperialismo tiverem controle absoluto do poder político no Brasil, viveremos uma eterna reprodução da dependência e do subdesenvolvimento. Não somos sujeitos da história, mas objetos das tendências mundiais do sistema imperialista, vivendo ciclos eternos de modernização reflexa. Esse conceito, usado por Guerreiro Ramos e quase todos os pensadores críticos de sua época, trata de países e regiões subordinados no sistema capitalista global, que operam dinâmicas de modernização seletiva e contraditória para atender aos interesses do mercado mundial, sobre a gerência da burguesia interna.
Somos um proletariado externo do sistema imperialista. Existimos para transferir riqueza para fora, em ciclos periódicos de destruição criativa de pessoas e recursos naturais, enquanto a classe dominante interna garante sua acumulação de capital e taxa de lucro a partir da superexploração da força de trabalho – dependência, transferência de valor e superexploração se irmanam num circuito fechado, onde o espaço para transformação histórica das condições de vida do povo trabalhador é quase nulo.
No capitalismo dependente, não resolvemos nada, muito menos o racismo. Guerreiro Ramos errou bastante nas suas respostas sobre o que é o Brasil e nossas relações étnico-raciais, mas acertou em abundância nas perguntas que fez e na postura que tinha – até o golpe de 1964 – para responder aos desafios postos pela práxis. Esse é seu maior legado!
Terminamos este escrito com uma citação de Clóvis Moura. Na introdução do livro Sociologia do negro brasileiro (Editora Perspectiva, 2019), Moura aponta com extrema atualidade (o ano original da publicação é 1988) o dilema de uma perspectiva antirracista vocacionada para transformar o país e das muitas lições de Alberto Guerreiro Ramos:
“A articulação do problema étnico com o social e político é o que alguns grupos negros não estão entendendo, ou procuram não entender para se beneficiarem de cargos burocráticos e espaços abertos para membros qualificados de uma ínfima classe média branqueada. Guerreiro Ramos teve oportunidade de enfatizar o perigo de se criar uma ‘sociologia enlatada’. De nossa parte, tememos que alguns elementos negros, ao concluírem a universidade, em vez de se transformarem em ideólogos das mudanças sociais que irão solucionar o problema racial no Brasil, assimilem os valores ideológicos dessa sociologia enlatada, o que levará o negro a continuar sendo cobaia sociológica daqueles que dominam as ciências sociais tradicionais: brancos ou negros. Como se pode ver, não quero que exista uma sociologia negra no Brasil, mas que os cientistas sociais tenham uma visão que enfoque os problemas étnicos do Brasil a partir do negro, pois, até agora, com poucas exceções, o que se vê é uma ciência social que procura abordar o problema através de uma pseudo-imparcialidade científica que significa, apenas, um desprezo olímpico pelos valores humanos imbricados na problemática estudada por eles. Não observam, dessa maneira, que seus conceitos teoricamente corretos (dentro da estrutura conceitual da sociologia acadêmica) coloca-os “de fora” do problema, e, portanto, não penetram na sua essência, são anódinos, inúteis, desnecessários à solução da questão social e racial do negro e, por isso mesmo, são frutos de uma ciência sem práxis e que se esgota na ressonância que o autor desses trabalhos obtém no circuíto acadêmico do qual faz parte.” (MOURA, 2019, p. 33).