Estados Unidos e Rússia
Em um momento em que o capitalismo se arrasta em crises estruturais, a União Europeia desmorona, as organizações multilaterais perdem legitimidade e a recente Conferência de Segurança de Munique não garante nada, os elementos que anunciam o fim da globalização como a conhecemos estão se tornando cada vez mais visíveis. Nesse cenário convulsivo, Trump, envolto em uma narrativa hipócrita de paz, decide capitular diante de Putin na guerra que está sendo travada em território ucraniano. Os “democratas” dos EUA, assim como os do velho continente, estão atônitos.
O jornal oficial do Peru “El Peruano”, assim como o “Boletín Oficial” da Argentina, o “Registro Oficial” do Equador, entre outros, em sua ânsia de se colocar a serviço incondicional de Trump, reproduzem submissamente a campanha imperialista de uma “paz duradoura”, quando na realidade o que está acontecendo é a capitulação dos EUA à Rússia em um quadro mais amplo de reconfiguração da ordem mundial. Trump tentará se livrar da ignomínia culpando Biden pela vergonhosa derrota em uma guerra que “não era sua”.

(Foto: RS/Fotos Públicas)
A esta altura, apesar das falácias espalhadas pela mídia controlada por Trump e sua equipe, está claro que a guerra não é, nem nunca foi, entre a Ucrânia e a Rússia, mas entre os EUA e a Rússia. Também está claro que a guerra foi perdida pelos EUA sem atenuantes e sem que os fogos de artifício da mídia pudessem esconder isso, mostrando Trump como o porta-estandarte da “paz duradoura” que aceita as condições exigidas pelo Kremlin, não importa o que a UE diga ou faça, muito menos Volodimir Zelensky.
Como lembramos, essa guerra começou em 2014, quando a extrema direita ucraniana, apoiada pelos EUA, assumiu o poder com uma postura antirrussa radical e com a decisão de exterminar as populações pró-russas e de língua russa na região do Donbass, que mais tarde ficou conhecida como a “guerra do Donbass”. Desde então, a Rússia tem estado presente no conflito apoiando o setor pró-russo e os EUA apoiando a virulência antirrussa de Kiev.
Portanto é falsa a narrativa imperialista de que a guerra teria começado em fevereiro de 2022. A Rússia, nessa data, decidiu por uma “operação militar especial” não apenas para impedir o assassinato em massa de populações pró-russas, mas, acima de tudo, os avanços da OTAN na Ucrânia e na Geórgia que colocavam sua segurança em risco. Essa ação não era segredo para os serviços de inteligência dos EUA e da OTAN, mas eles não admitiram sua iminência. Ver Mark Rutte, secretário-geral da OTAN, e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, parecendo perturbados, como se a ação russa tivesse sido uma surpresa, revela sua reação tardia e total falta de conhecimento da situação atual e futura no caso ucraniano.
E quanto à China?
A hipótese de que a capitulação de Trump, após o fracasso da política externa belicista de Biden, poderia consolidar a relação estratégica entre a Rússia (potência nuclear) e a China (potência tecnológica) ainda não foi comprovada. Pequim, fiel ao seu estilo, não afirma nem nega. Seu jogo vai além das conclusões epidérmicas de um processo geopolítico muito mais profundo e complexo.
A eventual conclusão bélica oferecida por Trump está sendo meticulosamente observada pela China e, com essa postura, ela não perdeu tempo em dizer à UE que a potência asiática está disposta a estender a mão em um momento em que o bloco está enfraquecendo e seus membros estão sentindo o vácuo. A subserviência incondicional da UE ao imperialismo dos EUA está cobrando seu preço, com repercussões que estão em pleno andamento.
Está claro que Trump e Putin, inspirados pela Conferência de Yalta, estão decidindo a nova ordem mundial que, entre outras coisas, estabelecerá suas esferas de influência no planeta. A China, sem estar nas “conversações” com os acima mencionados, não é alheia a esse processo; de fato, Xi Jinping vem definindo sua esfera de influência, sistematicamente e sem alarde bélico, com a Nova Rota da Seda, sob o princípio de “benefício e futuro compartilhados”, que se mostrou muito mais eficaz do que a “persuasão” baseada no poder das armas.
Yalta e Helsinque
Desde a conversa telefônica entre Trump e Putin (12.02.25), os fantasmas da Conferência de Yalta (1945) e, em menor escala, os de Helsinque (1975) ganharam vida. Os eventos atuais entre os líderes dos EUA e da Rússia lembram Roosevelt, Churchill e Stálin quando, precisamente em Yalta-Crimeia, eles dividiram o mundo, definindo áreas de influência e exigindo reparações financeiras do perdedor. E, de forma subsidiária e utilitária, apela-se aos fantasmas de Helsinque quando o respeito à soberania e à integridade territorial não se choca com os objetivos da nova divisão do mundo.
Para alguns especialistas, o que Trump e Putin estão projetando não são apenas esferas de influência na nova ordem mundial, mas um imperialismo explícito com sintomas de impérios de épocas passadas. Enquanto Trump reivindica o continente americano e a Europa Ocidental para seu império, Putin reivindica a Ásia Central e a Europa Oriental como sua esfera de influência. Não é muito difícil imaginar o Tio Sam e suas garras agarrando a América Latina, assim como não é muito difícil imaginar o novo czar abraçando seu antigo império.
Estamos em uma época em que o imperialismo antiquado está dizendo ao mundo para se preparar para uma nova era de dominação que, em sua forma mais extrema, pode ser brutal e inescrupulosa, como uma eventual anexação do Canadá e da Groenlândia, a retomada do Canal do Panamá, a tomada dos recursos minerais estratégicos da Ucrânia como se fossem seus ou a transformação de Gaza em uma “Riviera do Oriente Médio” administrada pelos EUA. Nesse cenário, a China poderia assumir o controle de Taiwan e a Rússia não apenas assumiria um terço da Ucrânia, mas poderia esperar um retorno ao antigo império russo.
A Europa, graças à sua subserviência aos EUA, que a transformou em um Estado vassalo, está se esgotando em seu próprio jogo; ela deixou de ser um parceiro estratégico dos EUA para se tornar pouco mais do que um passivo para os objetivos de Trump. Até que ponto as piscadelas do dragão ajudarão os europeus? Resta saber.
Condições russas para uma “paz duradoura”
– A “negociação” é entre a Rússia e os EUA. Zelensky e a UE aguardam os resultados.
– Territórios ocupados pela Rússia (Crimeia desde 2014 e Donetsk, Luhansk, Zaporiyia e Kherson desde 2022) se tornarão parte da Federação Russa.
– O exército da OTAN deixa Kursk e não há trocas territoriais.
– A Ucrânia nunca será membro da OTAN, talvez seja membro da UE.
Esquerda socialista
Qual é a posição das forças da esquerda socialista em relação à proposta de paz do loquaz Trump? A resposta merece mais do que uma simples arenga de apoio ou rejeição. O expansionismo de raízes coloniais que mascara a proposta não parece estar de acordo com o internacionalismo socialista. Tampouco o fato de que, por trás dessa “paz”, há uma divisão imperialista clara e inaceitável do mundo. Se a paz, como entendida pelos impérios que “dialogam”, é mais colonialismo e a exploração dos países do sul global, a anexação de territórios, etc., o anti-imperialismo da esquerda socialista é colocado à prova diante de eventos como o atual. Não é uma opção não expressar uma opinião e tomar uma posição sobre as consequências da guerra na Ucrânia.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.