O Brasil tem, graças a sua política externa muito bem conduzida de 2003 a 2016, fortalecido seu papel de liderança regional nas Américas. Os pilares dessa política têm sido a cooperação e o respeito pela soberania dos parceiros.
Diferentemente do chamado ocidente coletivo, o Brasil não costuma julgar governos em suas relações bilaterais. Críticas a desvios na proteção de direitos se dá em foros multilaterais, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Não é por outro motivo que nossa chancelaria tem por mais de uma vez rejeitado relatórios sobre a situação dos direitos humanos no Brasil produzidos pelos Estados Unidos da América do Norte. Aceita, outrossim, os juízos proferidos por órgãos de implementação de tratados internacionais dos direitos humanos, como é seu dever.
Essa linha de atuação é coerente com o que dita o artigo 4°, III e IV, de nossa Constituição, segundo a qual as relações internacionais do Brasil se regem pelo respeito à autodeterminação dos povos e pelo princípio da não-intervenção. Todos os povos são livres de determinarem sua forma de governança e não podem, por isso, se submeter ao juízo de outros estados. O Brasil tem, por isso, a prática de reconhecer estados e não governos, ressalvada a hipótese de ruptura violenta da ordem democrática, na linha da Carta Democrática Interamericana, que, mesmo não vinculante, é diretriz de soft-law internacional para orientar os membros da Organização dos Estados Americanos.
Diante desse quadro, é preocupante a atitude do governo brasileiro de se arrogar o direito de não reconhecer o resultado das eleições presidenciais venezuelanas. Não houve naquele país nenhuma ruptura violenta da ordem constitucional, a Comissão Nacional Eleitoral proclamou o resultado do pleito dentro de sua competência legal, com a participação de representantes do governo e da oposição.
O Brasil reconhece o Estado venezuelano e, com isso, deve respeitar suas instituições e se abster de juízos sobre seu funcionamento, no plano bilateral. Não lhe cabia exigir a exibição de mapas eleitorais. Definitivamente, tal conduta fere a nossa constituição.
Pode ser, até, prática usual do chamado ocidente coletivo, que manipula o conceito de democracia, para usá-lo como instrumento de intervenção e pressão hegemônica. Não condiz, porém, com nossa tradicional prática respeitosa e neutra no que toca às condições políticas de governança de cada país, só rompida passageiramente, por primitivos impulsos ideológicos, no infausto governo fascista de Jair Bolsonaro.
Grave também foi o país bloquear a legítima aspiração do governo venezuelano de integrar-se ao BRICS, que contava com a simpatia dos outros membros do bloco. Essa atitude hostil mina nossa política regional e nossa liderança hemisférica, além de constituir forte agravo ao estado da Venezuela, que é muito maior dos que o governo da vez. O argumento da “falta de confiança”, com que a diplomacia brasileira justificou sua decisão, é ofensivo, subjetivo e unilateral.
O Brasil vem perdendo, assim, sua capacidade de intermediar imparcialmente os conflitos entre o governo de nosso vizinho e outros atores internos e externos, como sempre fez. Se foi para apaziguar os ânimos e as relações com irmão do norte, foi uma demonstração de incoerência política.
(*) Eugênio Aragão é ex-ministro da Justiça, jurista e advogado