A privatização do nosso tempo (tempo mesmo)
Quando o tempo deixa de ser comum, a troca também se enfraquece. A conversa vira ajuste de agenda. O encontro vira tarefa.
Acordei cedo. Não era a primeira vez da noite. Já tinha dormido e acordado outras duas, como tem sido frequente ultimamente. Um sono picado, quebradiço, desses que não descansam — apenas adiam o cansaço. Quando levantei de vez, o quarto ainda estava escuro. Deixei o celular onde estava e fui para a sala. Peguei um livro, me sentei e li por cerca de duas horas e meia. Não sei quanto tempo passou exatamente, só sei que não olhei nenhuma tela. Foi bom. Uma pequena trégua.
Resolvi sair. Fui ao supermercado, sem pressa e sem o celular. No caminho, me dei conta de algo simples: eu não sabia que horas eram. Não quis perguntar para ninguém — talvez por vergonha, talvez porque hoje a pergunta parece um incômodo. Foi aí que notei: não havia um relógio sequer no trajeto. Nenhum. Olhei para dentro dos botecos antigos, da padaria gourmet, do salão de cabeleireiro, da loja de escapamentos. Nem no supermercado, que costumava ter um digital no alto da parede. Nada. Nem mesmo os antigos painéis de rua — aqueles que exibiam propagandas, a hora e a temperatura — resistiram. Desapareceram todos.
Aquilo me estranhou. Lembrei de quando a hora era um dado coletivo, ao menos compartilhado. Os painéis da avenida, o relógio acima do caixa eletrônico, o luminoso da farmácia. Nada muito sofisticado, mas visível, partilhado. A hora como referência comum, como parte do nosso convívio urbano. Agora, é como se ela tivesse sido retirada do domínio público e recolhida às bolhas privadas dos aparelhos pessoais. Cada um com seu tempo. Cada um vigiando sua própria agenda. E quem não tem acesso, que aguente o deslocamento ou o constrangimento. A ausência do tempo visível é também um sinal de exclusão.
Jonathan Crary escreveu um livro incômodo e necessário sobre isso: 24/7 – Capitalismo Tardio e os Fins do Sono. Ele diz que vivemos sob um regime de tempo contínuo, sem pausas, onde o sono, o descanso e a escuridão se tornam anomalias. Não há mais noite. Não há mais trégua. Tudo é absorvido pelo ciclo interminável da produção, do consumo, da conexão. A vida se dilui numa vigília que nunca termina. Crary mostra que o tempo, como o sono, tornou-se um território em disputa: o capital busca estendê-lo ao infinito, mesmo à custa do corpo, da mente e do mundo. Não por acaso, ele vê no sono um dos últimos gestos de resistência — porque nele, nada se consome, nada se controla. É um tempo sem margem, sem borda, sem fenda. Um tempo contínuo que rejeita qualquer interrupção — não apenas do sono, mas da dúvida, da escuta, do outro. Como se toda pausa fosse suspeita.
Minha manhã sem saber as horas me fez pensar nisso de um jeito que nenhuma leitura solta tinha feito antes. Não se trata de nostalgia, mas de uma constatação: estamos sozinhos diante do tempo. Cada um se vigia, se cobra, se esgota. Cada um mede sua produtividade, sua fadiga, sua performance. Como se falhar fosse culpa nossa. Como se não produzir bastante fosse um defeito de caráter. O tempo foi arrancado de seu vínculo comunitário e transformado em instrumento de gestão pessoal.

Quando o tempo deixa de ser comum, a troca também se enfraquece. A conversa vira ajuste de agenda. O encontro vira tarefa. A escuta perde fôlego, porque tudo precisa caber num intervalo produtivo. A experiência se encurta, vira registro, dado, postagem. Não há mais sobra, nem espera, nem aquele tempo meio ocioso onde algo podia nascer — um desabafo, uma ideia, um gesto. A vida comum precisa de tempo comum. Sem isso, até o afeto se precariza. A gente se encontra, mas não se cruza. Se fala, mas não se escuta. E o que era experiência vira sequência. Vira fluxo. Vira ruído.
Crary chama esse processo de privatização do tempo de “colonização do presente”. Tudo é sugado pela lógica da visibilidade contínua, da disponibilidade total. Não há intervalo que não esteja em disputa. Nem mesmo o sono escapa — ele é cada vez mais interrompido, negociado, medicado, cronometrado, comprimido. Dorme-se menos, pior e sob demanda. A ideia de uma noite inteira de descanso virou quase um privilégio, algo incompatível com a lógica do 24/7 que nos rege. O capitalismo tardio não precisa mais apenas do nosso trabalho: ele quer também o nosso tempo livre, nosso silêncio, nosso cansaço, nosso fôlego. E talvez algo mais: nossa capacidade de imaginar. No sono, ainda há mundo. Um mundo sem tela, sem tarefa, sem meta. E talvez por isso ele esteja em extinção — porque lembra que outra vida é possível.
Penso nos relógios que sumiram e no sono que se fragmenta. Na noite que não apaga. No silêncio que não se alcança. E compreendo que há uma estratégia em curso, mesmo que disfarçada de progresso: a de destruir o tempo comum. Porque sem tempo comum, não há experiência comum. E sem isso, toda resistência se torna mais difícil. Sem o comum, não há ruptura. A troca é rarefeita. A vida solitária. É nesse esvaziamento do presente, diz Crary, que se instala a catástrofe: um tempo sem memória, sem interrupção, sem imaginação, controlado.
Voltei pra casa, fui ver as horas no celular. E tive a estranha sensação de que o dia me atrasou de um tempo que já não existe mais. O atraso de um não compromisso. Ou melhor, de um tempo que tentam nos fazer esquecer — porque ainda poderia ser de todos.
Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, pesquisador e doutorando em Ciências Humanas e Sociais.
