Olá, Diversidade de gênero, de inscrição religiosa, étnico-racial, de orientação sexual e todos os marcadores sociais que nos definem. Aqui vai um recado para nós que subimos de pé a rampa do palácio em 2023 e não queremos descer rolando com um pontapé dado nos nossos direitos encolhidos e relativizados a cada abandono de pauta em nome da “democracia viril (sempre) ameaçada” e, ainda, em razão do eterno conservadorismo congressual que serve de álibi desde o império para nos colocar no final da fila. Que a lição das mulheres nas ruas no último final de semana, diante do descalabro consentido do PL dos estupradores, sirva para mostrar aos políticos progressistas que não dá mais para pegar carona atrasada no movimento das ruas. Não dá mais para seguirem reativos, esperando as ondas de likes nas redes sociais. Há que olhar menos para a tela do celular e mais na cara dos parlamentares, e, assim, construir o debate público com perdas e ganhos, indo além do filme editado de vitória e lacração para sua bolha. Há que voltar a ter protagonismo no “debate sobre os costumes”, que mais que uma pauta congressual, é o lugar onde a sociedade, em sua pluralidade, conflitua e, por isso, disputa, institui, educa, disciplina e rompe com nossas ideias e práticas.
Eu, Jacqueline, tenho sido levada a sentir dor pela expropriação coletiva do meu corpo e a viver uma condenação moral antecipada por um futuro violento e que ainda não aconteceu, mas que é autorizado toda vez que alguém com poder, prestígio e visibilidade, em especial os homens, ressuscita sua autoridade patriarcal no debate público com o cheque-caução “eu sou contra o aborto, mas….”.
Só dizer que é “contra”, uma advertência de superfície em tom de censura, serve para ficar bem em todas as fotos da cruzada moral midiática e para “matar” o debate. Uma cruzada que vende ter o monopólio político-religioso da defesa do valor universal da vida, quando todos nós vivemos e lutamos pelo direito à vida com dignidade e independência, em especial quem é capaz de engravidar! Uma cruzada que inventa, para manter seus arautos como sujeitos superiores e nobres, um grupo inexistente de pessoas que seriam “contra a vida, a favor do aborto”!
Estas pessoas, caricaturadas como portadoras de uma humanidade historicamente suspeita e emocionalmente desequilibrada, as mulheres, é claro, justificariam uma permanente tutela do estado com o monopólio masculino para governar sua vida biológica, privada e pública. Seus úteros e ovários devem ter outros donos que violam, mas também cuidam, e principalmente, legislam sobre esta propriedade física e moral. Os homens primeiro, as mulheres depois e no final da fila da democracia viril ameaçada pela cidadania de gênero! Esta hierarquia se repete até na fala solidária de políticos que se dizem contra a “PL do estuprador” diante da reação feminina nas ruas.
Simplificar o debate público ao “contra do bem versus a favor do mal” é um ato deliberado de má fé religiosa, porque a serviço da instrumentalização política de um projeto autoritário de poder que manipula nossas crenças e impõe derrotas prévias às mulheres, assim subalternizadas. A conversa vira o que se quer: um papo de homens provedores, protetores e predadores. Cumpre o papel de excluir e/ou reduzir direitos da mulher e reprodutivos.
Isto permite a manutenção da desigualdade social e de gênero, com as cínicas terapias penais como soluções violentas de encerrar à força o debate público e resolver, de forma também violenta, com a criminalização do aborto e a exultação da cultura do estupro. Afinal, o estupro é uma prova-testemunho da autoridade de gênero: mulher estuprada segue tratada como uma mulher previamente bandida que facilitou e provocou sua violação, com seu corpo e alma, fazendo por merecer a violência corretiva sofrida. E, mais, pode se tornar agora uma criminosa, periculosa de nascença, por se recusar germinar a semente dos senhores de sua vida e de sua morte.
Qual menina acorda alegre e chama as coleguinhas para irem juntas brincar de serem estupradas e de fazerem aborto? Qual jovem, querendo curtir sua vida, pede às amigas para irem com ela ali curtirem juntas um estupro divertido seguido de um aborto aventureiro e perigoso? Qual mulher sonha e corre atrás de um futuro com abortos e estupros em seu currículo?
Chega de hipocrisia que assassina meninas e mulheres estupradas e engravidadas. Em sua maioria, meninas periféricas e negras. Debater é preciso, pactuar não é tão preciso porque tem que nos incluir, as pessoas que são ou foram capazes de engravidar, as protagonistas deste pacto e que afirmam antes de tudo o direito inalienável a uma vida digna, soberana e segura! Vamos reabrir a roda para enlarguecer o debate público sobre violência sexual, segurança e saúde reprodutiva!
(*) Jacqueline Muniz é Antropóloga e cientista política. professora da Graduação de segurança pública e da pós-graduação de justiça e segurança da UFF. Integrante do Forum Brasileiro de Segurança Pública. Ocupou funções como formuladora e gestora de políticas públicas de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro e no Ministério da Justiça e Segurança.