A favela da Maré, no Rio de Janeiro, como tantas outras comunidades periféricas do Brasil, é marcada por uma profunda desigualdade racial. Essa disparidade se manifesta em diversos aspectos da vida social, incluindo a educação. A educação de jovens e adultos (EJA) na Maré enfrenta o desafio de construir uma prática docente antirracista que combata os estereótipos e valorize a história e a cultura afro-brasileira. Nesse contexto, o estudo da África Antiga emerge como uma ferramenta poderosa para promover a transformação social e a construção de uma prática docente que rompa com as raízes eurocêntricas dos currículos escolares tradicionais.
O EJA enfrenta barreiras políticas e desafios cotidianos para sobreviver, além de sofrer com um profundo silenciamento nas políticas públicas de educação, não possuindo nenhuma legislação específica ou um currículo atrelado à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Além disso, sua implementação como forma de valorização da cultura local de jovens, em especial na favela da Maré, esbarra num cotidiano repleto da violência policial que permeia a vida de jovens negros.
O ensino contextualizado sobre a África Antiga tem o potencial de trazer consigo a descolonização dos saberes, bem como um empoderamento dos estudantes da Maré.
Descolonizando o saber
O ensino tradicional sobre a África, frequentemente eurocêntrico e distorcido, contribui para a perpetuação do racismo e da invisibilidade da história africana. Ao descolonizar o saber e apresentar uma visão afrocentrada da história, o professor da EJA na Maré pode desafiar os estereótipos negativos e promover o reconhecimento da África como berço da civilização e da cultura.
No início do século XX, as políticas públicas educacionais brasileiras, conduzidas por nomes como Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Fernando de Azevedo, Antônio Carneiro Leão e Edgar Roquette Pinto tiveram um sentido duplo. Ao mesmo tempo em que expandiram o alcance da escolaridade para a população pobre e não-branca, reforçaram o estereótipo sobre a negritude como símbolo do passado, algo responsável pelas mazelas e pelo atraso do país, um desafio a ser superado, ultrapassado e enterrado pelos valores “modernos”, ou branco-europeus. A implantação da educação pública universal no Brasil na primeira metade do século XX teve suas ações e seus motivos influenciados pela ideologia racial de pelo menos três maneiras: primeiro, pelo secular colonialismo europeu; segundo, pelo elitismo branco ao qual pertenciam os articuladores das políticas educacionais que continuavam a associar a brancura à força, saúde e virtude; e terceiro ao racialismo intrínseco ao sonho utópico de um Brasil moderno, desenvolvido e democrático.
A tarefa das elites brasileiras era encontrar novas formas de criar brancura, necessária para manter a vitalidade. Dessa forma, os educadores criaram escolas cujas normatividades se baseavam na raça e, através dela, suas recompensas funcionavam. “Naturalmente, para eles o futuro do Brasil era Branco” (DÁVILA, 2006, p. 26). Para educadores, cientistas sociais e formuladores de políticas públicas, a fuga da armadilha determinista da negritude e da degeneração do Brasil só poderia vir através da escola. Esta instituição deveria fornecer recursos culturais e de saúde a todas as crianças, como forma de embranquecê-las socialmente – um exemplo de como a raça no Brasil era uma categoria social, e não somente biológica, que poderia ser reparada futuramente através da educação, da saúde e da miscigenação.
É a partir do entendimento de que o campo educacional foi central para o desenvolvimento de políticas públicas que visavam o embranquecimento cultural e a valorização da narrativa eurocêntrica de mundo, que sugerimos aqui que o ensino da África Antiga seja crucial para o combate às noções enraizadas nos currículos escolares sobre os povos africanos apenas como mão de obra na criação da sociedade brasileira.
A riqueza da História Africana
A África Antiga era composta por diversos reinos e impérios com complexas estruturas sociais, políticas e econômicas. O estudo de civilizações como o Egito Antigo, Núbia, Axum, Mali e Gana permite aos alunos da EJA conhecer a riqueza cultural e tecnológica do continente africano, desmistificando a ideia de que a África era um continente atrasado e sem história.
Ressignificando a identidade afro-brasileira
Ao abordar a história da África Antiga na EJA, o professor contribui para a ressignificação da identidade afro-brasileira. Ao conhecerem as raízes africanas de sua cultura, os alunos se reconhecem como herdeiros de uma história rica e poderosa, combatendo o sentimento de inferioridade e promovendo o orgulho de ser negro. Aprendendo sobre a história da África Antiga, os alunos têm a oportunidade de reconhecer a riqueza e a profundidade de suas raízes culturais, em especial na favela da Maré.
A favela possui uma história ligada ao trabalho de um pequeno grupo de pescadores negros que se fixou nas proximidades da Bahia de Guanabara e cresceu a partir do cooperativismo presente nessa realidade, comum e associável a vários grupos etnicos africanos.
Esse reconhecimento e essa aproximação são capazes de criar um ambiente favorável para o compartilhamento de ideias e para a ressignificação da identidade brasileira, associando-a a valores civilizatórios africanos.
Desconstruindo o racismo estrutural
O estudo da África Antiga na EJA pode ser um instrumento para compreensão de que a perspectiva da organização autônoma de entidades negras por educação é de importância crucial para desconstruir o racismo estrutural presente na sociedade brasileira. Ao analisar as diferentes formas de opressão e resistência ao longo da história, os alunos podem desenvolver ferramentas críticas para questionar as desigualdades raciais e lutar por uma sociedade mais justa.
Metodologias ativas e participativas
Para que o estudo da África Antiga seja realmente transformador na EJA, é fundamental que o professor utilize metodologias ativas e participativas. Através de debates, oficinas, projetos de pesquisa e visitas a museus e centros culturais afro-brasileiros, os alunos se tornam protagonistas do processo de aprendizagem e desenvolvem uma postura crítica e reflexiva sobre a história e a cultura afro-brasileira.
Conclusão
O estudo da África Antiga na EJA é uma ferramenta poderosa para a construção de uma prática docente antirracista. Ao descolonizar o saber, valorizar a história e a cultura afro-brasileira e promover a reflexão crítica sobre o racismo, o professor da EJA contribui para a formação de cidadãos conscientes e atuantes na luta por uma sociedade mais justa e igualitária.