Walter Moreira Salles lançou o filme Ainda estou aqui, sobre o desaparecimento do deputado Rubens Paiva sob a ótica de seu filho. A peça cinematográfica é baseada na autobiografia homônima do filho, publicada em 2015, e retrata a transformação de Eunice Paiva, de dona de casa a ativista dos direitos humanos, lutando pela verdade e contra a repressão fascista do regime civil-militar.
Filmes, livros e afins não devem ser analisados exclusivamente pelo conteúdo, mas pela relação entre conteúdo e relações sociais e políticas de seu contexto. O conteúdo só faz sentido em um contexto. Monteiro Lobato pode ter um bom texto, mas seu texto cumpria a função de defender o eugenismo e a arianização da população brasileira. Ignorar esse fato é mistificar Monteiro Lobato. Já Machado de Assis possui um texto fantástico, que fica ainda mais fantástico quando se sabe que a sua produção se deu sobre uma sociedade escravista. Lima Barreto é outro que possui texto brilhante, que também fica ainda melhor quando se coloca em lume a sociedade republicana segregada que lhe internou – episódio a partir do qual se tirou a sua melhor foto –, que expressam na sua obra e na vida real o reacionarismo da classe dominante oligárquica.
Nesse sentido, há um paradoxo escondido no filme de Walter, que consiste na relação do filme com o diretor e seu lugar de classe, ou melhor, a história do seu lugar de classe diante do filme. Isso porque, além de diretor nas horas vagas, que são todas dos seus dias, Walter é um dos herdeiros da família Moreira Salles, dona do Itaú-Unibanco, o maior banco do país, com os maiores lucros proporcionais do planeta.
Poder-se-ia entrar no mérito da origem de seu capital, escondida nas propagandas e na enorme estrutura político-ideológica que o Itaú-Unibanco e as famílias proprietárias possuem nos meios de comunicação, a saber: compra, venda e exploração até a morte de africanos escravizados no sul de Minas.[1]
Após a abolição, esse capital foi realocado para o sistema bancário, quando João Moreira Salles, o avô, comissário de cafeicultores em São Paulo, conseguiu a autorização para a fundação da Casa Bancária Moreira Salles. Em 1940, a Casa Bancária Moreira Salles se fundiu com o Banco Machadense e a Casa Botelho. A Casa Botelho vem de outra família de escravistas. A avó de Walter foi Lucrécia de Alcântara, herdeira de outra família escravista do sul de Minas. O casamento era um negócio burguês, um meio eficiente de acumulação, tal qual no Brasil Império ou no Brasil Colônia.
Mas a questão aqui não é apenas o pecado original escondido da família. É o pecado seguinte, o nó górdio da hipocrisia burguesa de Walter.
Em 1964 ocorreu o Golpe Civil-Militar, que aumentou consideravelmente a desigualdade e a concentração de renda no Brasil. Na ala civil, os grandes fiadores foram os banqueiros, dentre eles as famílias do Itaú (Setúbal e Vilela) e o pai de Walter, o banqueiro Walther Moreira Salles, que chegou a ter um pequeno entrevero no governo Costa e Silva pela proximidade que possuiu com João Goulart – integrou seu primeiro gabinete como ministro da Fazenda e pairava como uma aura perigosa para a ala mais ultrafascista do regime. Mas era coisa pouca. Walther era amigo de Rockfeller e até de Greta Garbo. Se foi amigo de Goulart, foi também do embaixador Lincoln Gordon. Delfim Neto convenceu o regime de que era uma besteira.
E era! Dois meses depois do golpe, promulgou-se uma ampla reforma bancária que permitiu aos bancos comprarem outros bancos menores e de investimento, resultando no nosso sistema bancário atual, em que quatro famílias comandam todo o sistema de crédito do país. Em 1965, o almirante da Marinha norte-americana Arthur W. Radford e conselheiro da mineradora Molucorp Inc. convenceu Walther a investir em nióbio. O almirante havia conseguido direitos do governo brasileiro sobre uma grande faixa de depósito do metal em Minas Gerais. Como? É um mistério até hoje. Provavelmente, foi uma fatura dos golpistas aos EUA.
Os dois principais ganhadores da reforma bancária imposta pelos banqueiros foram o Itaú e o Unibanco. O Unibanco, de Walther, comprou a Agrimer (Banco Agrícola Mercantil). Em 1970, comprou o Banco Predial do Estado do Rio de Janeiro e, em 1975, alterou o nome da instituição para Unibanco.
Além de escravizados, Walter Moreira Salles ficou bilionário, como herdeiro, justamente com o Golpe Civil-Militar de 1964. A função de cineasta é um hobby que prova que burguês não precisa trabalhar: Walter nunca entrou no banco.
Seu pai e seu tio, João Theotônio Moreira Sales, foram grandes apoiadores do regime, por mais que “performassem” uma postura “intelectualista” de “mecenas” de artes e afins. Walter e seus irmãos gozam não apenas da obscena herança, mas da isenção de impostos sobre lucros e dividendos, algo conquistado em parte da ditadura e definitivamente com Fernando Henrique Cardoso, também apoiado pela família. Uma herança política muito bem defendida. Como prêmio, Pedro Malan, ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso, tornou-se presidente do banco após a fusão entre Itaú e Unibanco.
Hoje a fortuna da família, estimada em 48 bilhões de reais, está dividida em 15 fundos exclusivos geridos pela Brasil Warrant Gestão de Investimentos (BWGI). O grosso dos investimentos está na Off Shore JPMorgan ou ETFs, que compõem grande parte do portfólio do fundo Mantiqueira Master Fim CP IE.
Em palavras mais diretas, o capital está fora do país, em paraíso fiscal. Entre 2017 e 2019, a família Moreira Salles recebeu 13 bilhões de reais do Itaú-Unibanco e da CBMM, mineradora de nióbio da família. Tudo com isenção de impostos sobre lucros e dividendos que a família, por meio de lobby, atua para que continue.
Agora Walter fez um filme sobre um homem que seu pai ajudou a matar e a torturar enquanto se tornava bilionário. Quem apoiou o fascismo é responsável pelas consequências do fascismo. O que mais espanta é a ideia absurda na “esquerda playboy” (conceito de Paulo Galo) de que a arte independente de seu tempo histórico e político. Basta que se emocione exclusivamente pelo conteúdo porque a arte é contemplativa, desde que materialmente e existencialmente o emocionado se identifique, lógico – isso pode ficar escondido no inconsciente para evitar paradoxos e somatizações. Um filme de executados em favelas é paisagístico; serve para a direita inflar o “bandido bom é bandido morto” e para a esquerda fazer “campanha pela desmilitarização da polícia”. E só!
A peça cinematográfica é uma homenagem à hipocrisia burguesa, pois se apropria do passado desvinculando-se do que a família do diretor produziu e com o que lucrou no mesmo passado. Apresenta o diretor no presente fantasmagoricamente independente do passado que o fez bilionário. O filme transformou-se em uma divagação metafísica sobre um passado imaginário por meio da apropriação de uma história real. Um bom ciclo da hipocrisia: o herdeiro de um bilionário que ficou bilionário na ditadura justamente porque a ditadura o ajudou, em troca de apoio amplo e irrestrito, fez um filme sobre um homem que foi torturado e morto pela ditadura que o enriqueceu. Falta à família Moreira Salles fazer um filme sobre a escravidão.