Entre os dias 9 e 11 de outubro de 2024, será realizada a XL Sessão da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) em Lima. Esta instituição que gerava debates animados sobre a realidade regional, ainda nas décadas de 70 e 80 do século passado, já não os faz mais. No seu último relatório, por exemplo, salienta que a América Latina e o Caribe (ALC) estão presos em “armadilhas” aparentemente intransponíveis. Ao explicá-las, revela uma cautela mutiladora ao abordar as suas causas e, além disso, ignora outras “armadilhas” (corrupção e desprezo pela democracia representativa, entre outras) que têm efeitos tão ou mais corrosivos no desenvolvimento da região.
No seu recente relatório, a CEPAL acaba de “descobrir” algo que os peruanos e os latino-americanos já sabem há muito tempo. Ele nos diz, como quem não quer, que nossa região está presa em três “armadilhas”:
A primeira é a armadilha do baixo crescimento econômico, volátil, excludente e insustentável, derivada da incapacidade de considerar o desenvolvimento a longo prazo. Para corroborar isto, lembra-nos que entre 2014 e 2023, o PIB da região cresceu apenas uma média anual de 0,8%, menos de metade dos 2% que cresceu na “década perdida” de 1980.
A segunda é a armadilha da desigualdade e da baixa mobilidade social e coesão derivada da desigualdade de género, das deficiências no sistema educativo e de formação profissional, alimentadas pela baixa geração de emprego de qualidade, pelos sistemas fiscais regressivos e pelas políticas fiscais erróneas.
A terceira é a armadilha das baixas capacidades institucionais que resulta numa governança ineficaz que condiciona a visão nula do futuro a longo prazo, além da ausência total de gestão de transformações que aliviem os impactos das armadilhas apontadas.
Faz duas décadas ou mais, nós, latino-americanos, já sabíamos da existência dessas armadilhas cuja complexidade podíamos prever. Dezenas de intelectuais, políticos e muitas instituições locais disseram-no de diferentes maneiras e tons, mas acima de tudo estabeleceram claramente a responsabilidade do neoliberalismo que foi imposto na região com “sangue e fogo”, literalmente falando.
As lutas sociais que terminaram com a queda da ditadura Fujimori no final dos anos 90 e o assassinato de mais de 70 pessoas no Peru (verão 2022-2023) por protestarem contra o modelo e as “armadilhas” ilustram as antigas “conclusões” da CEPAL que, escritas com o capricho de um acadêmico, poderiam passar despercebidas pela maioria, como de fato está acontecendo.
No entanto, apelando ao provérbio popular, “nunca é tarde” para fazer as pazes. Nem é preciso dizer que as anotações da CEPAL sobre as “armadilhas” acabam por justificar o que foi escrito no passado, conferindo-lhe a credibilidade que a grande mídia lhe negou. Uma coisa é escrever a partir de um círculo de especialistas altamente remunerados, como as diferentes agências da ONU, enquanto outra bem diferente é escrever sem patronos de qualquer tipo, embora seja dito essencialmente a mesma coisa.
A CEPAL não tinha conhecimento destas “armadilhas” no passado? Não. Eu os conhecia muito bem. Se hoje você decide expô-las não é porque sejam novas, mas porque a oportunidade esperada teria chegado. Há já algum tempo que a CEPAL prefere se parecer mais a organizações multilaterais que, por razões de “maturidade e prudência”, permanecem em silêncio até que a verdade que “protegem” deixe de prejudicar os seus patrocinadores.
O seu compromisso com a sua empresa-mãe, a ONU, e o seu óbvio alinhamento com a ordem estabelecida, impede-a de “adicionar mais lenha à fogueira” que molda a crescente exigência dos cidadãos pela atenção pública, a escalada do descontentamento dos cidadãos e a crescente complexidade político-social. Foi necessário “esperar com prudência” por novos acontecimentos que impossibilitassem continuar mantendo o silêncio ou a encobrir realidades óbvias. Não só para os especialistas, mas para os cidadãos que sentiam o impacto das “armadilhas” no seu cotidiano.
Embora as apontadas pela CEPAL sejam reais, a corrupção e o desprezo pela democracia representativa qualificam-se como “armadilhas” tão ou mais degradantes da justiça e da igualdade.
De acordo com a Transparência Internacional (2024) “a corrupção está corroendo a região” e a luta contra ela é mais discursiva do que eficaz. As principais razões têm a ver com a concentração do poder político e econômico. Não se trata apenas da fraqueza e da subserviência dos sistemas de justiça, como aponta a CEPAL, mas de uma questão estrutural. As principais vítimas da corrupção são os sistemas de educação e saúde, bem como os sistemas de segurança dos cidadãos. Se as tendências continuarem, não nos deve surpreender que a violência e a insegurança, a desigualdade e a fome na região continuem a aumentar.
Quanto ao desdém pela democracia representativa, o relatório Latinobarómetro 2023 registrou o seguinte: em 2013, 51% dos inquiridos afirmaram não estar satisfeitos com a democracia; a insatisfação em 2020 subiu para 70%. Em outras palavras, a rejeição e a desconfiança nesta democracia não deixam margem para dúvidas. Este cenário, umbilicalmente associado ao tipo de matriz produtiva que a região possui, não tem merecido ser uma das “armadilhas” elencadas pela CEPAL. É evidente que a democracia representativa já não garante a equidade no crescimento e muito menos no desenvolvimento. Pelo contrário, a desigualdade e a violação dos direitos humanos estão atingindo níveis sem precedentes que merecem respostas inequívocas que abram espaço ao autoritarismo que é rejeitado verbalmente.
Como é que os radares da CEPAL não detectaram estas “armadilhas”? A sessão XL, em Lima, não tem autorização para abordá-los? Por que insistir que a corrupção é um problema nacional quando é transnacional há décadas? Se, eventualmente, a agenda da CEPAL incorporar a questão da corrupção sem mencionar os corruptos, ela não estará devidamente abordando o assunto. Um desafio.