De acordo com as autoridades peruanas que organizam a APEC-2024, o tema transversal das 160 reuniões preparatórias, e da própria cúpula de novembro, será “Capacitar, Incluir e Crescer”. Se abstrairmos do ambiente, este lema deveria suscitar entusiasmo e expectativas entre os cidadãos e as empresas. Infelizmente, é impossível não perceber que o acontecimento se desenrola num quadro de intensas disputas geopolíticas que, por enquanto, fizeram da Venezuela o seu epicentro. E, internamente, o Peru tem um governo cujo descrédito é revelado em todas as pesquisas que lhe dão 5% de apoio popular.
Neste contexto, não faltaram vozes dissonantes de fora, como a dos EUA que alertaram sobre a “ameaça chinesa”, e de dentro, como a do Ministro dos Transportes e Comunicações do governo peruano que diz que “não é uma prioridade o trem bioceânico” que, entre outros, levaria o megaporto de Chancay a níveis comparáveis aos portos de Xangai, Singapura e outros portos de relevância global.
Com o passar dos dias, a inauguração do megaporto de Chancay, novembro de 2024, aproxima-se irreversivelmente e contará com a presença do próprio Xi Jinping. Será um acontecimento que abrirá infinitas possibilidades de crescimento e desenvolvimento se o Estado peruano conseguir recuperar algum nível do seu próprio jogo em termos de soberania e não-alinhamento. Para a China, o megaporto é uma meta trabalhada com paciência e estratégia há muito tempo, constitui um poderoso ponto de apoio na sua disputa geopolítica com os Estados Unidos.
O megaporto de Chancay não é apenas um elo importante na Nova Rota da Seda que, por si só, justificaria todos os esforços que a China está fazendo. Além disso, possui os seguintes objetivos específicos:
- Contar com um porto Hub no Pacífico Sul do continente americano para competir globalmente com os portos de Los Angeles e Long Beach que movimentam 20 milhões de contêineres de mercadorias a cada ano, por um valor em torno de 300 bilhões de dólares. Esses portos articulados também são conhecidos como “Porto do Mundo”, por onde passa 80% do comércio internacional dos EUA. Além disso, esta lógica competitiva inclui o Porto de Manzanillo, no México, onde se realiza quase 50% do seu comércio internacional.
- Reduzir os custos e os prazos de importação de produtos estratégicos da América Latina. Em 2023, o comércio entre a China e a região ultrapassou a cifra de 181 bilhões de dólares.
- Desse total, 157 bilhões de dólares correspondem ao intercâmbio bilateral China-Brasil, com um superávit de 51 bilhões de dólares, tornando o Brasil o seu principal parceiro comercial. As exportações do Brasil para a China ultrapassam os 104 bilhões de dólares, superior à soma das exportações para a Europa e os Estados Unidos. O principal produto que o Brasil exporta é a soja, seguida pelos produtos agrícolas, os mesmos que saem do país pelo porto fluvial de Manaus.
- O Chile é o segundo parceiro comercial mais importante da China, com um intercâmbio comercial bilateral que excede 43 bilhões de dólares. O principal produto comercializado pelo Chile é o cobre, seguido das frutas sem caroço.
- O Peru, com a exportação de cobre e outros minerais, é o terceiro parceiro mais importante da China na América Latina. Seu intercâmbio comercial em 2023 foi de cerca de 25 bilhões de dólares.
- Em seguida vêm México, Equador e Argentina como os países cujo intercâmbio comercial com a China apresenta tendência crescente.
Não é por acaso, então, que existe interesse da China em ter um porto Hub. Precisa coletar e enviar grandes quantidades de produtos latino-americanos para o seu país e, em geral, para a Ásia. E, no sentido inverso, a China poderá exportar os seus produtos para a América Latina utilizando o porto de Chancay como grande centro de distribuição dos mesmos. Tanto na ida como na volta, os custos e os tempos do comércio internacional entre a América Latina e a China serão significativamente reduzidos.
Chancay não apenas permite atingir objetivos econômicos e comerciais, mas também se coloca como um poderoso fator de influência geopolítica que põe a China numa situação de expectante domínio na sua disputa pela hegemonia mundial contra os Estados Unidos.
- O porto de Chancay, sendo uma meta de extraordinária importância geopolítica e econômica, permaneceria inacabado se não fosse acompanhado por uma logística de transporte eficiente que não existe nos dias de hoje. Para este fim, estão em curso grandes projetos rodoviários que permitiriam alcançar quase 100% de eficiência nas operações em Chancay. Entre eles podemos citar:
- Trecho Pucallpa-Chancay, passando por Tingo Maria, Huánuco e Cerro de Pasco, para se juntar à “Ferrovia Central” que liga Lima a Cerro de Pasco. Segundo especialistas, a complicada geografia do Peru não é mais um problema, pois possui tecnologia que permite trabalhar em condições complexas.
- De Lima, poderia ser construída uma linha ferroviária de 80 km até Chancay, utilizando trechos da rodovia Pan-Americana do Norte que, assim que os “trens locais”, cargas e passageiros, entrassem em operação, seriam liberados.
- O trecho Pucallpa-Cruzeiro do Sul, e Cruzeiro do Sul-Porto Velho, seriam considerados como uma etapa seguinte às anteriores. Esse trem ligaria Porto Velho (centro de captação da produção agrícola brasileira), Mato Grosso e Rio Branco.
- Levando em conta que Cerro de Pasco gera riscos de contaminação derivados da atividade minerária a céu aberto, está sendo considerada a construção da ferrovia Huánuco-Chancay, que protegeria os produtos sensíveis à contaminação mineira.
Estes projetos rodoviários associados a Chancay poderiam ser financiados pelo governo chinês ou pelas suas empresas, como foi sugerido por ocasião da viagem da presidente Boluarte à China. Se esta eventualidade ocorrer, constituiria mais um golpe geopolítico para os Estados Unidos, que estão fazendo de tudo para evitar ou atrasar a presença chinesa na América do Sul e, em particular, procuram complicar o início das operações em Chancay.
Em qualquer cenário relacionado ao porto de Chancay, o Peru se depara com uma oportunidade histórica de aproveitar não só o enorme investimento que está em perspectiva, mas também as enormes possibilidades de transformar a cidade de Chancay em um símile de Shezhen. uma cidade chinesa, cujo desenvolvimento se explica pelos benefícios que obteve com o seu porto.
As críticas e o ceticismo dos primeiros tempos cedem a um processo de crescente sensibilização dos cidadãos no âmbito de oportunidades de desenvolvimento derivadas do megaporto de Chancay. Ninguém duvida que será uma fonte de geração de emprego de qualidade, de investimentos nacionais e multinacionais e, se o Estado desempenhar um papel proativo, de crescimento econômico no curto e médio prazo. A partir daí, passar para a fase de desenvolvimento requer um desenho cuidadoso de um roteiro que garanta o desenvolvimento e o abandono definitivo da condição de exportação primária da economia peruana.
O que o Peru poderia propor? Entre outros:
- Implementação de Zonas Econômicas Especiais e Comerciais (ZEEC). Ou seja, Zonas Francas, francamente francas e não fiascos como a ZOTAC. Se inspirar das melhores experiências dos países asiáticos e combinar o investimento privado com o público.
- Promover e impulsionar a industrialização dos produtos nacionais com recurso a tecnologia de ponta que facilitará os ZEEC, instalar fábricas para produção de automóveis elétricos ou suas peças.
- Em vez de um papel passivo, o Estado deveria pesar, com soberania, o desenvolvimento do porto de Chancay, das infraestruturas e da logística associadas à presença chinesa e convertê-lo num fator de competitividade nacional, ampliando as suas possibilidades de diversificar as fontes de investimento e de disponibilização de recursos. tecnologia a nível mundial.
- A cidade de Chancay, em vez de ser uma cidade dormitório, poderia se tornar uma cidade completamente industrializada, com centros comerciais e financeiros semelhantes aos encontrados nas cidades asiáticas, cujo desenvolvimento está associado a megaportos como o de Chancay. A cidade de ShenZhen, considerada como Vale do Silício da China, é uma referência válida para o que dizemos.
- Chancay, apesar da inépcia do governo, tornou-se um paradigma de desenvolvimento de alta qualidade, inovação, empreendedorismo e criatividade. Não se pode perder essa perspectiva e oportunidade, como alertou Paul Romer, Prêmio Nobel de Economia de 2018.
- Trabalhar num novo posicionamento internacional dos nossos principais atrativos turísticos: cidades históricas e vestígios arqueológicos (atuais e potenciais) que tenham reconhecimento mundial.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.
(*) Tradução Rocio Paik.