A crise financeira atual – a mais grave, de acordo com vários indicadores, desde o crash de 1929 – foi analisada até o momento sob aspectos econômicos, financeiros e até mesmo geopolíticos. Entretanto, há um fato por detrás dela: durante quase duas décadas, abraçou-se na academia, nos meios de comunicação, no mercado e em governos um consenso sobre teoria e práticas de políticas econômicas que colaboraram para o colapso de um “capitalismo financista”.
Este artigo tem como objetivo levantar algumas idéias a respeito desta questão. Antes de tudo, é prudente explicar o que é este “capitalismo financista”.
A partir do final dos anos 80, rompe-se o sistema de proteção econômico e social das economias capitalistas. Durante a Guerra Fria, os instrumentos do sistema internacional (monetário, financeiro e comercial) foram utilizados para estabilizar, na medida do possível, o capitalismo. Esta é a história das políticas cambiais neste período, das políticas fiscais e monetárias, da construção, mesmo que parcial, das instituições de comércio nas economias ocidentais. Da mesma forma, os sistemas de proteção social serviam como meio de acomodação para os potenciais conflitos sociais que poderiam aparecer diante da instabilidade (inerente, aliás) do próprio capitalismo.
Qual era a lógica de tudo isso? Estabilizar economias de mercado capitalistas, tanto do ponto de vista econômico como social, dada a necessidade de gerar um cordão de proteção frente à ameaça soviética. Refiro-me aqui às economias capitalistas reconstruídas depois da Segunda Guerra e ao Japão. Dentro de uma perspectiva realista, os EUA utilizaram todos os instrumentos do sistema internacional para buscar tal objetivo.
Entretanto, o mundo conviveu com as instituições de Bretton Woods durante todo o período que envolve o fim da Segunda Guerra e o início dos anos 90. Apesar de já em 1971 haver indícios de instabilidade crítica no sistema, culminando com a crise do dólar estadunidense, houve relativa estabilidade. Mas o fim da União Soviética mudou o cenário.
Do ponto de vista das crenças econômicas, o keynesianismo estava desgastado no final dos anos 80, seja porque na academia as críticas tenham sido relativamente consistentes, num primeiro momento, seja porque a crise de estaginflação (combinação de inflação e baixo crescimento econômico) dos anos 70 e a relativa estagnação da década subseqüente desgastaram as soluções advindas desta corrente de pensamento.
Não à toa, nos últimos 18 anos, brotaram teorias e práticas econômicas que pregavam a desregulação geral, ampla e irrestrita dos mercados, incluindo os financeiros, a abertura indiscriminada das contas de capital e a crença na auto-regulação de todos os mercados. Durante estas quase duas décadas, até a crise atual, qualquer economista que falasse em regulação do mercado financeiro, controle (relativo) de capitais ou que desconfiasse da capacidade de auto-regulação perfeita dos mercados era demonizado, crucificado e coberto com pás de cal. Um exemplo clássico foi o que aconteceu com Hyman Minsky, economista que se dedicou a analisar a instabilidade intrínseca ao capitalismo e sua natureza financeira.
A inquisição neoliberal não perdoava também jornalistas e formadores de opinião. Durante este período, floresceu o capitalismo financista, baseado num conjunto de ideologias, teorias econômicas exóticas (que analisam economias capitalistas onde não há moeda, tampouco ativos financeiros e imperfeições de mercado) e práticas de política econômica. O capitalismo financista baseia-se, ainda hoje, em três pilares: políticas econômicas que partem da crença da plena eficiência dos mercados financeiros, teorias e ideologias, advindas da academia, que inspiram tais políticas e o sistema de transferência de riqueza e renda criado por tal situação.
O último pilar deste status quo precisa ser levado em consideração. É evidente – não há nada de conspiratório nesta afirmação, apenas de teoria econômica das rendas e de política – que políticas econômicas são, em parte, baseadas em teorias com relativo suporte analítico e empírico, mas, por outro lado, em interesses.
Quando todos perdem
O mais irônico da crise atual é que exatamente os economistas que viam o capitalismo como um sistema baseado no crédito, na moeda e na dimensão financeira dos mesmos e dos ativos foram esquecidos em prol de economistas que passaram a defender a auto-regulação dos mercados. A ideologia econômica que sustentou o capitalismo financista ignorava a própria dimensão financeira do mesmo. Não obstante, na verdade ideologias e crenças econômicas cumprem o papel de construir consensos que racionalizam interesses.
Do ponto de vista da economia política, não podemos ignorar que, por detrás desta crise, há uma conjunção de fatores relacionados com a construção de uma nova ordem econômica (ou a tentativa de construí-la) e com interesses constituídos. Políticas econômicas geram, normalmente, ganhadores e perdedores. Há políticas que podem, no jargão econômico, representar uma situação pareto superior, qual seja, um status quo onde todos ganham.
Certamente este não foi o caso do capitalismo financista e, pior, ainda usando outro jargão econômico, o fim desta ordem econômica poderá representar um “jogo de soma negativa”, ou, em bom protuguês, uma situação onde todos perdem.
A ironia é que Minsky (1919 – 1996) foi recuperado, todos querem lê-lo, seus livros e artigos estão no topo das buscas nas bibliotecas, na internet, nas livrarias. Até mesmo um tal de Keynes (1883-1946), e talvez até mesmo Schumpeter (1883-1950), provavelmente serão chamados para dar várias palestras. Será difícil contatá-los, mas lê-los não.
* Marcos Fernandes Gonçalves da Silva é doutor em Economia pela USP e pós-doutor no ILAS/SAS – University of London. É pesquisador, coordenador do projeto pedagógico da Escola de Economia de São Paulo, da FGV. Leciona também Economia Política do Desenvolvimento no curso de Relações Internacionais e Economia da PUC-SP
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