Terça-feira, 10 de junho de 2025
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Antonio Gramsci definiu o conceito de hegemonia de muitas formas em seus cadernos da prisão. Em uma delas, o líder comunista italiano dizia que hegemonia é uma forma de poder político revelada pela liderança moral e intelectual exercida por uma classe ou fração de classe sobre outras forças sociais, ou até sobre a sociedade inteira. Ampliando a conhecida noção marxista segundo a qual ‘as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante’, Gramsci nos convidou a pensar essa dinâmica em diferentes conjunturas, contextos e escalas, além de nos lembrar que uma contra-hegemonia é justamente aquilo que desafia esta direção moral e intelectual em dada altura.

A batalha cultural é, portanto, nevrálgica para este tipo de análise. O tipo de valores, de códigos, normas sociais, visões do que é correto ou errado, ético e antiético; tudo isso faz parte das disputas políticas em termos hegemônicos. Sendo o futebol um óbvio espaço de cultura popular (e também da elite), as ideias de Gramsci parecem úteis para refletir sobre o que acontece nesse universo também. A recente polêmica envolvendo a seleção argentina de futebol, que entoou cânticos racistas, eurocêntricos, machistas, homofóbicos e transfóbicos ao comemorar a conquista da Copa América, oferece um excelente exemplo da importância da liderança hegemônica na construção da realidade política e social. Eis o refrão cantado pelos próprios jogadores após a partida:

“Escutem, corre a bola, eles jogam na França, mas são todos de Angola. Que lindo que vão correr, comem transexuais como o p… do Mbappé. Sua velha (mãe) é nigeriana, seu velho (pai) é camaronês, mas no documento: nacionalidade francês”.

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Em termos hegemônicos, essa é nitidamente a argentina de Javier Milei, cuja eleição recente expressa o senso comum (racista) da sociedade argentina de forma extrema. Mas também é a Argentina de Lionel Messi. E, no caso em questão, esta é certamente a seleção argentina que, há mais de uma década, pertence à Era Messi na história do futebol mundial. Ele é o líder hegemônico desta geração, interferindo até na escalação e convocação de jogadores ou na escolha de treinadores para seu país. Sua liderança é inconteste, pois ninguém se atreve a enfrentá-lo, menos ainda após a vitória no Mundial de 2022 (contra a mesma França da música, aliás).

A hegemonia anterior pertencia, é claro, a Diego Armando Maradona, que representava um outro balanço de forças sociais na política de seu país e da América Latina como um todo: campeão mundial na era da redemocratização após uma terrível ditadura militar, Maradona nunca escondeu seu esquerdismo e rebeldia. Pelo contrário, sempre os exerceu, a seu modo, em sua militância socialista, desde as tatuagens de Che Guevara no corpo, em declarações de apoio eleitoral, numa relação histórica com Cuba socialista (e com Fidel Castro, em particular), e até participando como ator político direto em episódios de importância continental, como foi a luta contra a Alca (Áreal de Livre Comércio das Américas).

Messi e Maradona
Foto soccer.ru – 27/06/2018
Todo argentino consegue idolatrar Messi, do mais radical socialista ao mais troglodita fascista, passando pelo mais “neutro” empresário; Maradona é intolerável para anti-esquerdistas

Nesse caso, durante a Cúpula das Américas de Mar del Plata, em 2005, Maradona foi um ator-chave na gigantesca mobilização popular que deu respaldo social nas ruas à resistência feita pelos governos Chávez, Lula e Kirchner ao projeto neoliberal e imperialista impulsionado por Washington. Naquela ocasião, Maradona encantou a multidão ao lado de Chávez, dizendo não à Alca para um estádio lotado e repleto de bandeiras vermelhas. Ele emendou: “Amo vocês. A Argentina é digna! Mandemos Bush ir embora”. Maradona chegara à cidade sendo o “maquinista” daquilo que foi apelidado de “Trem da Alba” cercado por milhares de pessoas, num claro exemplo de contra-hegemonia, pois o projeto político da Alba era, como o nome diz, tentar ser uma Alternativa Bolivariana para as Américas, em contraposição ao Consenso de Washington e ao monroísmo típico de nossa região.

É claro que Maradona não era um santo (apesar de existir uma religião fundada em seu louvor), principalmente naquilo que se refere à relação com sua família, que inclui (assim como Pelé) o não reconhecimento de filhos, mas também rompantes de agressividade com outros jogadores e até violência contra jornalistas, sem falar do abuso de drogas. No entanto, é impossível negar que Maradona e Messi protagonizaram não apenas eras distintas, mas também diferentes hegemonias políticas e culturais em seus respectivos momentos.

É inútil indagar se a tal música seria cantada no ônibus da seleção argentina sob a “liderança moral e intelectual” de Maradona, pois fatores externos obviamente fazem parte da equação. Mas pode ser frutífero refletir sobre o significado desse acontecimento a partir deste exercício mental comparativo. Maradona era um milionário, mas não temia a revolução: certamente viveria feliz num mundo sem milionários e com justiça social. Messi, o bom moço, branco, que viveu na Europa desde a adolescência, superou desafios pessoais e tornou-se símbolo do self made man capitalista, um personagem perfeito da crença liberal, exemplo de talento interior como fonte do sucesso no mundo exterior. Faz propaganda de produtos, não de ideias políticas (além daquelas embutidas na forma mercadoria, por supuesto).

Embora sua salvação individual também signifique que ele possa ajudar a outros, isso é feito na forma de filantropia, algo tipicamente capitalista e tipicamente estadunidense. Não surpreende, portanto, que tenham sido os Estados Unidos o lugar que Messi elegeu para terminar (manchar?) sua brilhante carreira, sem nunca ter pisado num gramado de futebol profissional na Argentina ou disputado uma partida de Copa Libertadores da América sequer. Sabemos também que idolatrar Messi é algo que todo argentino consegue fazer, do mais radical socialista ao mais troglodita fascista, passando pelo mais “neutro” empresário. Mas com Maradona não: ele é simplesmente intolerável para quem fez do anti-esquerdismo um estilo de vida.

É uma pena que Messi não tenha exercido uma hegemonia sobre seus colegas capaz de impedir, pela força de sua autoridade, esse tipo de comportamento asqueroso a que todo o mundo assistiu pelas redes sociais de Enzo Fernández, outro ídolo dessa seleção. É triste ver como uma figura de sua importância não se importa com o tipo de “imagem” (pensando em termos liberais), ou de mensagem política, que isso transmite. Transmite e reproduz, sendo, portanto, agente político na construção de uma realidade. Pode-se alegar que Messi, por qualquer razão, é um craque nos gramados, mas prefere não se tornar uma figura política – e que isso é compreensível. Sim, em termos liberais, é compreensível que ele desfrute de sua vida privada e, apenas residualmente, pense na sociedade. Mas é justamente aí que reside o perigo. Pois, como dizia Gramsci, o vazio de hegemonia é dos momentos mais perigosos. É justamente quando o velho mundo tarda em morrer enquanto o novo mundo tarda em aparecer, “nesse lusco-fusco” em que “irrompem os monstros”, como visto no ônibus da seleção argentina no domingo passado.

(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.