Quinta-feira, 24 de abril de 2025
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Em carreira solo ou com os Tribalistas, o cantor e compositor Arnaldo Antunes tem pavimentado uma estrada de tijolos amarelos no descampado da MPB e do pop nacional. Seu recém-lançado álbum Novo Mundo prossegue a caminhada idílica de sempre, por exemplo no refrão de “Pra Não Falar Mal”, um dueto com a jovem cantora e compositora Ana Frango Elétrico. De melodia atraente e versos em tons azul e rosa, a canção enumera explicitamente seus objetivos: “Pra melhorar a gente precisa ter mais cuidado/ pra não falar mal de ninguém/ não pensar mal de ninguém/ pra não ficar mal com ninguém/ não querer mal a ninguém”. Será possível “não ficar mal com ninguém”, como prega a meta mais loquaz da canção?

Vai longe o passado impiedoso com os Titãs, que empastelavam instituições e personalidades em tempo de rock – em “Igreja”, “Polícia”, “Família”, “Homem Primata” (1986), “Nomes aos Bois” (1987), “Miséria”, “Racio Símio” (1989) etc. Sozinho ou (sobretudo) no trio neo-hippie formado com Marisa Monte e Carlinhos Brown, Arnaldo vem pavimentando uma estrada pós-roqueira, em que um bom-mocismo de maturidade se apossa de todo e qualquer espaço que a rebeldia juvenil já tenha ocupado. “Nem só porque tomou um caldo vai ser contra a maré”, explicita no novo álbum a faixa “Tire o Seu Passado da Frente”.

O cantor Arnaldo Antunes durante show no Sesc Bauro, em agosto de 2010. (Foto: Cássio Abreu / Flickr)
O cantor Arnaldo Antunes durante show no Sesc Bauro, em agosto de 2010.
(Foto: Cássio Abreu / Flickr)

Contundente e engenhosa, essa última canção gera um receituário politicamente correto, mais palpável no idílio do artista que na realidade nua e crua: “Não é porque foi oprimido que vai virar opressor/ não é porque foi abusado que vai ser abusador/ não é porque foi detido que vai virar ditador/ não é porque foi desmamado que vai ter medo de amor”. A prescrição almeja um novo mundo melhor sob fundo religioso, misturando o ativismo contra a tirania com o manjado “dar a outra face” do catolicismo: “Não é porque foi desprezado que só vai dar pontapé”.

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Fora do refrão compartilhado graciosamente com Ana Frango Elétrico, “Pra Não Falar Mal” oculta um outro tom, mais áspero. “Não seja impaciente com quem é impaciente com você”, “não seja intransigente com quem é intransigente com você”, “não seja tão opaco com quem não é transparente com você”, formula o autor, conduzindo no limite à fórmula (não explicitada) de que não se combatem fascistas com mais fascismo. Parece construtivo, mas é também ambíguo. A fileira de sentenças no imperativo camufla um fundo autoritário e negativo, marcado com insistência por “não seja”, “não seja”, “não seja”, “não seja”. Num trecho declamado, o narrador arremata, impositivo e arbitrário: “Pureza e quietude são o padrão de medida do mundo”.

O próprio título do álbum, Novo Mundo, parece sinalizar a permanência do bom-mocismo e da rejeição categórica ao conflito e à turbulência num mundo que, afinal de contas, nunca foi um mar de rosas. Felizmente, o caso é mais complexo, e o mundo novo preconizado por Arnaldo na faixa de abertura é na verdade um desvio trôpego dos tijolos dourados, rumo a terreno mais pantanoso. 

Nada celebratória, “Novo Mundo” é uma canção que comenta as faces mais sombrias do presente, seguindo as pegadas de uma importante peça anterior de Arnaldo, a antibolsonarista “O Real Resiste” (2020). “Nos meets do OnlyFans não tem romance”, “se tem o Google para quê memória?”, “o forasteiro se tornou um inimigo pra quem de sua ignorância se orgulha”, ironiza o narrador. O rapper baiano Vandal vem complementar a crítica contumaz de “Novo Mundo”, entre comentários como “futebol agora é bet”, “seu dinheiro é bitcoin” e outros pesadelos dos tempos de agora. “Não há como fugir dessa panela”, sintetiza Arnaldo, menos otimista e edulcorado do que sempre, ainda que o refrão “bem-vindo ao novo mundo que vai se desintegrar no próximo segundo” procure escamotear uma brisa que é mais de fim do mundo que de “um novo mundo é possível”.

Já ao final do álbum, em “Tanta Pressa pra Quê?”, mais uma vez a visão açucarada do tribalismo se turva diante do real. “Todo mundo tem opinião o tempo todo/ todo mundo tem algo a dizer”, reclama um sujeito pessimista disfarçado de otimista, aqui menos preocupado com os avanços fascistas que com o alarido de opiniões, xingamentos e cancelamentos nas redes sociais. Sem ter por onde fugir, a letra ressalta o desespero e a desesperança: “Todo mundo tem opinião o tempo todo/ pare o mundo que eu quero descer”. Se até Arnaldo Antunes está cabreiro com a matéria de que se está fazendo nosso admirável mundo novo, talvez seja o caso de manter ligados o pisca-pisca e as antenas.

(*) Pedro Alexandre Sanches é Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)