Nos últimos dias, Volodymyr Zelensky rejeitou os recentes acenos da China e do Brasil para a construção de um ambiente de diálogo que possa discutir um acordo de paz e colocar fim no conflito armado travado no território do país que preside.
Em comum, Brasil e China, e também a Índia, defendem a participação de Moscou nas negociações e cúpulas internacionais de paz, o que para Zelensky significa colaboração com a Rússia. Para ele, a proposta conjunta formulada por Celso Amorim e Wang Yi, em maio deste ano, é “destrutiva” e a postura aparentemente neutra do Brasil é, na verdade, um sinal de cumplicidade com as ações da Rússia. Em visita a Kiev na última semana de agosto, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, voltou a defender um diálogo direto entre as partes do conflito, o que Zelensky rejeita.
É verdade que a Rússia possui boas e estratégicas relações com a Índia, China e, em menor grau, com o Brasil. Mas não deixa de ser importante mencionar que nenhum desses países saíram em defesa da invasão russa ocorrida em fevereiro de 2022. Durante a visita em Kiev, Modi chegou a afirmar que defende a integridade territorial da Ucrânia, mas voltou a dizer que a Rússia deve participar das negociações de paz. Nesse mesmo sentido, nenhum dos três países desconhecem ou ignoram as complexidades do conflito e as dificuldades em se criar um ambiente de negociação em que o fim da guerra tenha chances reais de ser alcançado, mas seria um absurdo supor que eles desejam seu prolongamento. E não por motivos éticos e morais, mas porque os interesses econômicos e comerciais da China, Brasil e Índia demandam um sistema internacional cada vez menos conflituoso.
A verdade é que enquanto as coisas continuarem como estão, isto é, enquanto os parceiros ocidentais da Ucrânia continuarem fornecendo ajuda financeira, enviando armamentos e apoiando o discurso político de Zelensky e, portanto, colocando a Ucrânia em condições de resistir ao conflito, dificilmente irão importar as boas intenções dos que desejam construir a paz. Muito menos se essas boas intenções partem do que chamamos hoje de Sul Global.
Nesses dois anos e meio de conflito, a Ucrânia pareceu muito pouco empenhada – para não dizer nada –, em criar uma solução para a paz. Após bater em retirada e abandonar as tratativas dos Acordos de Istambul no final de março de 2022, os acenos do governo de Zelensky foram raros, sem substância e se dissiparam muito rapidamente. O mais recente deles se deu em julho, quando o então ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmitri Kuleba, visitou a China e afirmou que a Ucrânia estava pronta para negociar a paz com a Rússia. Nenhum passo foi dado e, no início de setembro, Kuleba entregou seu pedido de demissão ao presidente ucraniano.
A falta de iniciativa e o veto da Ucrânia em iniciar negociações de paz em que a Rússia esteja presente se dão pelo óbvio: o país cedeu tanto sua soberania que hoje não possui uma estratégia autônoma para lidar com um conflito armado que já comprometeu 20% de seu território e deslocou um quarto de sua população. Na aparência, as ordens partem de Kiev, mas não sem antes serem discutidas e definidas em Washington e Bruxelas. Para estes últimos, os russos jamais devem se sentar à mesa para discutir os meios e modos de qualquer coisa que seja.
No início de agosto, a ofensiva ucraniana pareceu ganhar algum fôlego quando seus soldados cruzaram as fronteiras da Rússia, mas não se sabe exatamente o que pretende a Ucrânia com a incursão no oblast de Kursk. Para alguns analistas militares, o objetivo seria deslocar parte das forças russas que hoje estão na região do Donbass, criando uma nova frente de batalha para a Rússia e consequentemente enfraquecendo os esforços de Moscou para tomar todas as regiões de Donetsk e Lugansk. Declarações de autoridades da Ucrânia indicaram que não há objetivo de ocupação territorial de longo prazo na região, mas sim de gerar pressões operacionais e logísticas para a Rússia.
Seja qual for o objetivo ao adentrar o território de Kursk, pouco mais de um mês depois não está claro, nem mesmo do ponto de vista territorial, os ganhos obtidos pela Ucrânia. E se em algum momento eles aparecerem, eles serão insuficientes para reverter o quadro geral da guerra e o avanço russo dentro do território que até fevereiro de 2022 fazia parte da Ucrânia.
Apesar do cansaço da propaganda pró-Ucrânia e da necessidade urgente de envio de ajuda, dos sinais eleitorais que surgem em países com a Alemanha e a França e mesmo nos Estados Unidos, os apoiadores de Zelensky seguem defendendo que o conflito prossiga, não importa o preço a ser pago e muito menos qual é o custo em vidas ucranianas.
Mesmo com a escalada das tensões, a Rússia tem se mostrado muito mais receptiva a negociar a saída para a paz, e o faz por motivos óbvios: seu status no campo de batalha é superior ao da Ucrânia e a coloca em melhores condições de ditar os termos de um acordo. Putin tem colocado suas condições na mesa e insistido na necessidade do reconhecimento da nova realidade territorial. Isto é, que desde setembro de 2022, Kherson, Lugansk, Donetsk e Zaporhyzya são agora partes da Federação Russa. Além disso, a Rússia não abre mão de garantias de seguranças que envolvam a neutralidade da Ucrânia e sua não-adesão à OTAN.
Mas Zelensky insiste em abstrair a realidade do campo de batalha, exige que a Rússia se retire dos territórios onde avançou e restaure a integridade territorial da Ucrânia, o que inclui também a península da Crimeia, anexada em 2014. Difícil dizer quais condições seriam mais irreais que estas.
Putin diz querer a paz e o início das negociações. Ao mesmo tempo, afirmou que a Rússia está pronta para responder a futuros ataques de mísseis de longo alcance ao seu território. Em outras palavras: caso a Ucrânia ataque a Rússia com sistema de armas ocidentais, Moscou está pronta para uma mudança radical na natureza do conflito, em que uma escalada sem precedentes incluiria também os que colaboram com a Ucrânia.
(*) Rose Martins é analista internacional e pesquisadora, formada em Relações internacionais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e mestra em Economia Política Internacional